quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A última entrevista de Euclides da Cunha

Por volta das 11h do dia 15 de agosto de 1909, Euclides recebeu em sua casa, na avenida Atlântica, em Copacabana, Rio de Janeiro, o escritor, também jornalista, Viriato Correia, para uma entrevista a ser publicada pela “Illustração Brazileira”. Era domingo, “era sol e era azul”, informa Viriato. Mais do que uma entrevista, o encontro foi uma conversa, um diálogo entre duas pessoas inteligentes, dois literatos de alta cepa, que já haviam se encontrado e proseado muito “sobre livros e sobre arte” na rua do Ouvidor — certamente na Garnier. Durante algumas horas tratou-se sobretudo de “Os Sertões”, do processo de sua confecção — estaria se inaugurando (mais um pioneirismo de Euclides, sempre antecipador) o hoje bastante praticado making of? Almoçaram, mas não saíram “descalços para passear na praia”, como sugerira Euclides (acima, em foto de acervo da Academia Brasileira de Letras) quando na Ouvidor convidara Viriato a ir “um domingo lá em casa” — não saíram porque Euclides anunciou ter um compromisso. Despediram-se, Viriato levando com ele as preciosas anotações, Euclides partindo para o derradeiro ato de sua vida, naquela tarde daquele mesmo dia. O sol e o azul do dia transformaram-se à noite numa terrível chuva, que inundou a cidade, que fez-se cinza e negra — assim como o Brasil... (apresentação de Mauro Rosso, autor do livro “Escritos de Euclides da Cunha: política, ecopolítica, etnopolítica”, que sairá em setembro pelas editoras PUC/Loyola, para a última entrevista concedida por Euclides da Cunha. A entrevista será publicada no livro).


É ali, em Copacabana, ao rumor das ondas, numa casa batida pelo vento do mar e de janelas abertas para o azul do oceano, que Euclides da Cunha vive a sua existência extraordinária, do mais completo e do mais artista historiador brasileiro.

Uma tarde, em que à rua do Ouvidor, falávamos de livros e de arte, ele me bateu amigavelmente nos ombros:

— Vai um domingo lá em casa, que diabo! Conversamos, almoçamos e depois sairemos descalços, a passear na praia.

Desde as primeiras páginas de Os Sertões que eu comecei a ter pelo historiador de Canudos a mais cega e comovida admiração. Não era admiração apenas, era mais — adoração — adoração por aquele escritor, que, imprevistamente, surgia onipotente e supremo, para o espanto de uma língua e de uma raça, por aquele narrador de guerra que de tão alto se punha para historiar todos os problemas da luta, pelo artista ruidoso e formidável, que abria uns novos painéis de arte robusta e essencialmente nossa, pelo paisagista incomparável. evocador, como nenhum outro, gigantesco, resplandecente, como ninguém.

Foi num domingo que lá estive. Era sol e era azul. A casa estava com as janelas abertas para o vento do mar, rumorejante da alegria das ondas, que, na areia se esfarelavam toda lavada do sol daquele domingo álacre.

Euclides é um simples como nunca vi assim. Quem o encontra na rua, magro, o rosto carregado, numa profunda concentração, não acredita o que pode haver de alegre, carinhoso e desprendido naquela alma. Quem devora as páginas rutilantes de “Os Sertões” imagina que ali está um escritor de sossego e método e que a obra foi feita com o maior dos métodos e o mais regular dos sossegos.

Nada disso. Nem uma coisa nem outra. Euclides nunca “se assentou”.

A sua vida tem sido uma vida errante, ora aqui, ora ali, numa comissão, noutra, as malas sempre prontas, os livros dentro das malas. Ora em Minas, em São Paulo, no Amazonas, no Acre, em Canudos; de lápis na mão, enchendo de algarismos os livrinhos de notas, como engenheiro.

Ao que ele conta, desde estudante que o seu sonho é pousar; ter uma vida pacata, a sua casa, tudo em ordem, os seus livros arrumadinhos, a hora certa de começar o trabalho, a hora certa de terminá-lo, e hora certa de dormir. E nunca teve. A sua existência tem sido revolta, sem assento em lugar nenhum, irregular, imprevista, incerta, nômade, uma hora aqui, outra onde o diabo perdeu as botas, sempre carregado de trabalho, trabalhando noites além, um dia no costado de um cavalo, percorrendo sertões, outro medindo terras, outros suando, entre o fragor dos martelos, numa ponte que se constrói. Um horror!

— Continuo a ser o estudante que era. Tudo à revelia.

Ao entrar-se em casa de Euclides, a gente fica à vontade. Não parece que se está em frente de um dos máximos prosadores de uma língua, mas sim de um rapaz amigo, de um velho camarada com quem se viveu larga quadra, de um companheiro que nos fala de suas coisas como se fossem nossas, uma dessas criaturas que vão, logo à primeira vista, espavorindo a cerimônia, e a quem a gente se sente mal de dar até o tratamento de “senhor”.

E o que é curioso, o que mais ressalta e o que mais comove, é a profunda modéstia de Euclides. Isso dele ser o mais completo dos nossos historiadores, o artista extraordinário, o escritor surpreendente, o paisagista formidável, isso, somos nós aqui fora que o dizemos. Ele, ele é que não está convencido disso. A sua modéstia é orgânica. Os sertões para ele nada tem de extraordinário. É um livro como outro qualquer.

Aquelas páginas assombrosas cheias daquele fragor e daquela comburência de frase, daqueles painéis faustosos, que nos fazem vibrar e arder de entusiasmo e de orgulho, para ele são páginas rasteiras, cobertas de defeitos. De defeitos!

— De defeitos, sim! — confirma Euclides, muito espantado de ninguém ter dado por isso. — Aqui estão eles. Na nova edição de “Os Sertões” fiz seis mil emendas. Não se diga que sejam erros de revisão, são defeitos meus, só meus.

E mostrou-nos o livro, onde em cada página aparecem pelo menos três remendos.
— Hei de consertar isto por toda a vida. Até já nem abro Os sertões porque fico sempre atormentado, a encontrar imperfeições a cada passo.

É ao almoço, numa sala para o mar, enquanto o vento da praia agita os guardanapos, que Euclides me conta como escreveu “Os Sertões”.

Estava por esse tempo em São José do Rio Pardo, reconstruindo uma ponte. Era um trabalhar sem conta, noite e dia, ele ali a dirigir as obras, sempre à frente, no tumulto dos operários.

A ponte construída por outros engenheiros havia uma noite desabado desastrosamente e o governo de São Paulo convidara-o a reconstruí-la.

A obra era da mais alta responsabilidade, principalmente depois do desastre. Euclides, por amor próprio, em respeito à sua carta de engenheiro, estava sempre à tese de tudo. Morava numa casinha a dois passos das obras e passava os dias, em cálculos, a lutar com os xx da matemática. Foi aí que veio a ideia de escrever “Os Sertões”.

Um livro daquele peso toda gente tem a impressão de que o seu autor escreveu-o cercado de volumes para consultar. Não foi assim. Euclides não tinha um livro consigo, nem um volume de geologia. Nada.

Mas assim mesmo atirou-se. A todo o momento tinha que levantar-se, para vir ver a marcha do trabalho da ponte, que se ia erguendo, quando estava num trecho, desses com que os escritores se torturam e dão um pedaço de vida para acabá-Io, eis que um operário vinha chamá-lo para resolver uma dificuldade. Apesar disso “Os Sertões” iam caminhando. À tarde o juiz de direito, o presidente da Câmara Municipal, mais duas ou três pessoas de Rio Pardo, reuniam-se à casinha de Euclides, para ouvir o folhetim.

Ele lia então as tiras que havia escrito durante o dia. Dentre as pessoas que vinham ouvi-lo havia um paulista conhecedor dos sertões; um desses talentos fulgurantes, estupendos que nunca são coisa alguma porque nunca entraram numa escola. Esse homem tinha cócegas de escritor. Tinha lá os seus versos, as suas tiras de papel cheias de rascunhos literários. Euclides da Cunha falou que ia descrever o estouro de boiada, dos quadros mais épicos e mais sinistros dos campos e matas brasileiros.

Nunca havia visto o estouro; sabia-o apenas por informação, por ouvir contar. O paulista vira diversos, estava “cansado de ver”, dizia ele.

— E se seu doutor quiser, seu doutor escreve, eu escrevo também e vamos ver quem é que faz mais perfeito.

Euclides teve, deveras, medo daquela proposta. Atirou-se à descrição, receoso de ser derrotado. No outro dia, à tarde, o matuto apresentou-se corajosamente, com as suas tiras de papel. O juiz de direito, o presidente da Câmara, as duas ou três pessoas de Rio Pardo esperavam o duelo.

— Leia!

— Leia o doutor primeiro!

Euclides leu. Leu aquela descrição incomparável, assombrosa, que nós todos conhecemos n’ “Os Sertões”. E ao terminar voltou-se para o homem.

— Leia!

— Qual, nada seu doutor. Olhe ali.

No chão, as tiras do pobre homem estavam aos pedacinhos, esfrangalhadas.

— Eu vou então ler alguma coisa depois disso?! Não é possível, não é possível, que o senhor não tenha visto pelo menos cem “estouros de boiada”.

E no meio da barulhada infernal dos martelos, das travas de ferro, dos foles, “Os Sertões” caminhavam. Quando a ponte ficou concluída, o livro estava concluído também. Ninguém sabia nesse tempo que Euclides era escritor. Ele apenas se havia mostrado no “Estado de S. Paulo”, numas crônicas, ligeiras, com as iniciais. Tinha medo da publicidade. Mas resolveu a publicá-lo. O juiz de direito, o presidente da Câmara de Rio Pardo, o matuto do “estouro” haviam-lhe dito que o livro era bom. Foi a São Paulo e levou-o ao “Estado”, para publicá-lo em folhetins. O maço de tiras era enorme. Isso parece que espantou. Seis meses depois, ao voltar a São Paulo e ao subir à redação do Estado, lá encontrou, num canto, o seu embrulho de tiras, empoeirado. Pô-lo debaixo do braço, e veio ao Rio de Janeiro. Não conhecia aqui nenhum escritor, a não ser Lúcio de Mendonça. Lúcio de Mendonça procurou-lhe editor. O escritor era desconhecido e o volume de tiras assustava. Os editores torciam o nariz.

O “Jornal do Commercio” não quis a obra para folhetins. Afinal o velho Masson da casa Laemmert, depois de muito pensar e de muito vacilar, disse que ficava com o rodo de tiras. Entra o livro no prelo.

Meses depois Euclides, que por essa feita estava em Lorena, ao chegar à Companhia Tipográfica, à rua dos Inválidos, abrindo ao acaso um volume, lá encontrava um a com uma crase intrusa, adiante uma vírgula de mais, etc., etc. Ele estava nesse tempo atacado de uma neurastenia profunda. Aquela crase, aquela vírgula, aqueles outros erros, pareceram-lhe grandes blocos de pedra, que vinham atacar o seu nome. Que horror! E a ponta de canivete (parece mentira, mas verdade), em dois mil volumes, Euclides raspou oitenta erros. Foram cento e sessenta mil emendas! Levou dias e dias nessa trabalheira gigantesca. Os operários da tipografia estavam assombrados com aquilo. Ele passava os dias, as noites curvado sobre os volumes, a raspar com a pontinha do canivete. Só acabou na véspera da chegada do barão do Rio Branco, em dezembro de 1902. O livro ia ser posto à venda no dia seguinte. Um estranho pavor se apoderou de Euclides. Tinha certeza de que a obra ia ser um desastre. E pediu ao editor que retardasse a venda para daí a três ou quatro dias. E tocou-se para Lorena.

O seu pavor tinha crescido estupendamente, tanto que, chegando a Lorena à meia-noite, às três da manhã estava de viagem. Para onde? Sabia lá! O que ele queria era fugir, esconder-se no fim do mundo, não ver mais ninguém, rasgar o livro, não ter notícias do desastre. E andou oito dias a cavalo pelo interior de São Paulo, sem destino. O que lhe passava pelo espírito era curioso: via-se inteiramente achatado, a sua reputação de engenheiro por terra, o seu nome espatifado nas crônicas dos jornais.

— Para que me fui meter eu nisso, senhores!

Ao chegar aos pousos do sertão, onde os sertanejos vinham recebê-la ao terreiro, para hospedá-lo, as reflexões que lhe acudiam eram interessantes.

— Ora veja, dizia, esses homens me tinham em tão boa conta!

Ao fim de oito dias sentiu saudade da família. Do livro não tinha a mais vaga notícia. Mas via-se servindo de troça nas rodas literárias da rua do Ouvidor, o editor desesperado com a bucha, a mandá-lo para o inferno. Chegou a Taubaté, de volta, empoeirado, à tarde. Depois da chegada do trem do Rio, seguia um expresso para Lorena. Enquanto esperava o expresso, foi comer alguma coisa, no restaurante da estação. Chega o trem do Rio. Uma multidão de passageiros salta e corre para o restaurante. Entre eles um homem alto, barbado, de guarda-pó e um livro debaixo do braço. Euclides tem um sacolejão. Se não se enganava tinha visto Os sertões, sob o braço do homem. Parece que foi alguma mola que o fez levantar-se. Chegou-se ao tipo, sacudido de emoção:

— O senhor pode deixar-me ver esse livro?

O senhor fitou-o, mediu-o e sério, desconfiado da má vontade, estendeu-lhe mudamente o livro, sem largá-lo. Era “Os Sertões”.

— Obrigado.

O seu desejo foi atirar-se ao sujeito e abraçá-lo. Mas voltou para a sua mesa e pôs-se a pensar e repensar. O livro estaria fazendo sucesso? Teria sido bem sucedido? Os jornais o que estariam dizendo? E a figura do passageiro de guarda-pó surgia-lhe à imaginação. Aquele sujeito não tinha cara de gostar de ler. Se estava lendo seu livro é porque estava gostando. Quem sabia se aquilo não era apenas ostentação, vaidade de mostrar-se aos outros passageiros do trem como leitor de um livro grosso! Poderia ser! Mas como foi que ele comprou o livro? O volume custava dez mil-réis. Só se dão dez mil-réis por um livro, quando se sabe, ou se ouve dizer, que esse livro é bom. Se aquele homem comprou, é porque ouviu dizer, ou por um amigo ou pelos jornais. Mas podia ser que aquilo fosse um presente. Podia. E o sujeito estaria gostando? Se ele não estivesse, ao saltar do trem para tomar um refresco na estação, deixaria o volume no seu banco. Se o trouxe debaixo do braço era porque o livro lhe era precioso. Mas também podia ser que fizesse aquilo para que não lho roubassem. Mas um livro ninguém se importa que carreguem com ele.

E nesse torturar de espírito, Euclides chegou a Lorena. Esperavam-lhe jornais e cartas. Cartas do editor. Do editor havia duas. Abriu uma por acaso, por felicidade era a segunda. Nessa carta, o editor dizia que estava assombrado com a venda do livro e que em oito dias estava quase esgotado um milheiro; contava-lhe do sucesso, das críticas dos jornais, do barulho que a obra estava fazendo. A outra carta, a primeira, era esmagadora. O editor confessava-se-lhe redondamente arrependido de tê-lo editado, dizia que não havia vendido um único volume e mais: que, sendo cada volume pelo preço de dez mil-réis, mandara oferecer aos “sebos” da rua de São José por cinco e nem um só aceitara.

— Se eu tivesse lido essa carta em primeiro lugar, parece que morreria, conclui Euclides, sorrindo.

É essa a história da obra máxima da nossa literatura. A profunda modéstia de Euclides é orgânica.

Com a publicação de “Os Sertões”, quem mais se espantou foi ele. Nós nos espantamos de ver que a nossa raça já tinha um escritor, que atingira ao mais alto grau da perfeição. Ele se espantou ao saber que esse escritor era ele.

V. C.


http://oglobo.globo.com/blogs/prosa (15/8/2009)

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