Um jovem Lévi-Strauss durante suas viagens pelo interior do Brasil, nos anos 30. Elas foram fundamentais para sua obra.
Você talvez nunca tenha lido um único parágrafo da obra de Claude Lévi-Strauss, mas é bom saber que suas palavras e ideias ajudaram a desenhar o perfil da humanidade no formato que ela possui hoje. Morto na semana passada, em Paris, pouco antes de completar 101 anos, Lévi-Strauss foi um intelectual verdadeiro e profundo, capaz de examinar a condição humana de forma aberta e original para enxergar experiências e possibilidades que ninguém vira antes.
Em livros e artigos, Lévi-Strauss influenciou as ciências sociais no mundo inteiro. Produziu um conhecimento humanista e sensível que ajudou a modificar, para melhor, as regras de convivência entre indivíduos, culturas e nações. Criado numa época de homens desiguais, sua obra consolidou referências que ajudaram a tornar o mundo mais tolerante, capaz de valorizar a igualdade entre os homens sem deixar de respeitar suas diferenças. Pela erudição e pela capacidade de atravessar as principais fronteiras da existência humana, o pensamento de Lévi-Strauss chegou à psicanálise, à religião, aos estudos literários e a praticamente toda forma de saber organizado, graças a um método de análise criado em suas pesquisas junto aos chamados povos primitivos. Conhecido como “estruturalismo”, o método chegou a ser tão popular, nos anos 60 e 70, como “aquecimento global” ou “ecologia” nos dias de hoje. (O próprio Lévi-Strauss jamais admitiu ter criado algo chamado “estruturalismo” e nem aceitava que fosse um método de uso universal. Desconfiava de todo sistema de pensamento e atribuía esse prestígio – imerecido, a seu ver – ao costume intelectual de criar e descartar “ismos”.)
Judeu nascido em Bruxelas, Lévi-Strauss levou uma existência de empregos incertos em locais remotos – para quem olha o mundo a partir da Europa – como São Paulo, Nova York, Nova Délhi e Karachi, antes de firmar reputação como intelectual influente. Encontrou mosquitos, febres e animais selvagens no interior do Brasil. Exilou-se nos Estados Unidos para escapar da perseguição aos judeus na França ocupada pelos nazistas. Na Ásia, assistiu às primeiras manifestações do radicalismo muçulmano e à expansão do pensamento budista. Em sua existência de um século, o pensamento de Lévi-Strauss contribuiu para preparar o mundo para a globalização – processo que reconhecia inevitável, mas que também chegava a horrorizá-lo.
Lévi-Strauss tinha menos de 30 anos quando chegou à Universidade de São Paulo para dar aulas. Nas férias, partia em viagens pelo sertão brasileiro, em busca dos bororos, dos nhambiquaras e outros povos tidos como primitivos. Queria escrever um romance. Em vez disso, construiu uma nova visão dos povos indígenas – de valor universal. Apesar da dificuldade para falar línguas estrangeiras, que sempre o incomodou, mantinha contatos que iam muito além da coleta de dados científicos junto a indivíduos de pele escura, cabelos negros e escorridos. Deixou uma coleção de fotos que testemunham sua aventura civilizatória, em que registra a alegria e o bem-estar de pessoas que, em sociedades com riqueza material muito menor, sobreviviam com dignidade e conforto relativo.
Na década de 30 do século passado, quando as noções vigentes de superioridade racial alimentaram a ascensão do nazismo e do fascismo, a visão de Lévi-Strauss era original e corajosa. Também era consistente. Após a Segunda Guerra Mundial, no fim de pesquisas na Índia e no Paquistão, o mestre voltou ao centro da Europa para dizer uma frase que ecoa até hoje: “Raça não existe”, proclamou. E disse que os homens são separados apenas por culturas diferentes – e não por uma hierarquia biológica diferente. Aos poucos, todos estão se convencendo disso. Não é um caminho linear, mas é inevitável como a globalização. É a grande vitória do mestre sobre os preconceitos de seu tempo.
Paulo Moreira Leite
Revista Época - Ed. 599
http://revistaepoca.globo.com
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