quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss *1908 +2009

Um jovem Lévi-Strauss durante suas viagens pelo interior do Brasil, nos anos 30. Elas foram fundamentais para sua obra.


Você talvez nunca tenha lido um único parágrafo da obra de Claude Lévi-Strauss, mas é bom saber que suas palavras e ideias ajudaram a desenhar o perfil da humanidade no formato que ela possui hoje. Morto na semana passada, em Paris, pouco antes de completar 101 anos, Lévi-Strauss foi um intelectual verdadeiro e profundo, capaz de examinar a condição humana de forma aberta e original para enxergar experiências e possibilidades que ninguém vira antes.

Em livros e artigos, Lévi-Strauss influenciou as ciências sociais no mundo inteiro. Produziu um conhecimento humanista e sensível que ajudou a modificar, para melhor, as regras de convivência entre indivíduos, culturas e nações. Criado numa época de homens desiguais, sua obra consolidou referências que ajudaram a tornar o mundo mais tolerante, capaz de valorizar a igualdade entre os homens sem deixar de respeitar suas diferenças. Pela erudição e pela capacidade de atravessar as principais fronteiras da existência humana, o pensamento de Lévi-Strauss chegou à psicanálise, à religião, aos estudos literários e a praticamente toda forma de saber organizado, graças a um método de análise criado em suas pesquisas junto aos chamados povos primitivos. Conhecido como “estruturalismo”, o método chegou a ser tão popular, nos anos 60 e 70, como “aquecimento global” ou “ecologia” nos dias de hoje. (O próprio Lévi-Strauss jamais admitiu ter criado algo chamado “estruturalismo” e nem aceitava que fosse um método de uso universal. Desconfiava de todo sistema de pensamento e atribuía esse prestígio – imerecido, a seu ver – ao costume intelectual de criar e descartar “ismos”.)

Judeu nascido em Bruxelas, Lévi-Strauss levou uma existência de empregos incertos em locais remotos – para quem olha o mundo a partir da Europa – como São Paulo, Nova York, Nova Délhi e Karachi, antes de firmar reputação como intelectual influente. Encontrou mosquitos, febres e animais selvagens no interior do Brasil. Exilou-se nos Estados Unidos para escapar da perseguição aos judeus na França ocupada pelos nazistas. Na Ásia, assistiu às primeiras manifestações do radicalismo muçulmano e à expansão do pensamento budista. Em sua existência de um século, o pensamento de Lévi-Strauss contribuiu para preparar o mundo para a globalização – processo que reconhecia inevitável, mas que também chegava a horrorizá-lo.

Tive sorte de entrevistar Claude Lévi-Strauss em Paris, no final de 1983. Aos 76 anos, o mestre já tinha direito a comportar-se como estátua de mármore, mas vivia como gente de verdade. Não tinha assessor de imprensa, não gostava de falar ao telefone e marcava compromissos formais por carta, que escrevia à mão, com caneta-tinteiro. Há um quarto de século, estava pessimista. Como ninguém poderia adivinhar que o Muro de Berlim seria derrubado seis anos depois, temia que o planeta fosse destruído numa hecatombe nuclear da Guerra Fria. Social-democrata por formação, apontava Raymond Aron, farol do conservadorismo francês, como o mais importante pensador de seu tempo, mais importante que o pai do existencialismo, Jean-Paul Sartre. A verdadeira preocupação, contudo, era outra. De paletó marrom, gravata vermelha, o mestre se dizia desgostoso com a pasteurização da cultura e dos costumes em todo o planeta, a ponto de afirmar que, intimamente, cultivava uma utopia passadista: gostaria de ter vivido no século XIX, quando cada país e cada povo podia se desenvolver plenamente, conforme seus valores e tradições. Seus olhos traíram uma única emoção, quando pensava com tristeza que os franceses deixariam de ser franceses, que os ingleses não seriam mais ingleses, que nós, brasileiros, não seríamos mais brasileiros e que os nhambiquaras, certamente, não seriam mais os nhambiquaras.

Lévi-Strauss tinha menos de 30 anos quando chegou à Universidade de São Paulo para dar aulas. Nas férias, partia em viagens pelo sertão brasileiro, em busca dos bororos, dos nhambiquaras e outros povos tidos como primitivos. Queria escrever um romance. Em vez disso, construiu uma nova visão dos povos indígenas – de valor universal. Apesar da dificuldade para falar línguas estrangeiras, que sempre o incomodou, mantinha contatos que iam muito além da coleta de dados científicos junto a indivíduos de pele escura, cabelos negros e escorridos. Deixou uma coleção de fotos que testemunham sua aventura civilizatória, em que registra a alegria e o bem-estar de pessoas que, em sociedades com riqueza material muito menor, sobreviviam com dignidade e conforto relativo.

Na década de 30 do século passado, quando as noções vigentes de superioridade racial alimentaram a ascensão do nazismo e do fascismo, a visão de Lévi-Strauss era original e corajosa. Também era consistente. Após a Segunda Guerra Mundial, no fim de pesquisas na Índia e no Paquistão, o mestre voltou ao centro da Europa para dizer uma frase que ecoa até hoje: “Raça não existe”, proclamou. E disse que os homens são separados apenas por culturas diferentes – e não por uma hierarquia biológica diferente. Aos poucos, todos estão se convencendo disso. Não é um caminho linear, mas é inevitável como a globalização. É a grande vitória do mestre sobre os preconceitos de seu tempo.

Paulo Moreira Leite

Revista Época - Ed. 599

http://revistaepoca.globo.com

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