quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss

O texto abaixo foi extraído do manuscrito inédito de "Isso não é tudo: Lévi-Strauss e a mitologia ameríndia", do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que será lançado em agosto de 2010 pela Cosac Naify, junto à primeira edição brasileira de "O homem nu", quarto volume das "Mitológicas", de Claude Lévi-Strauss.

O título do livro que começo a escrever aqui diante de vocês é Isso não é tudo: Lévi-Strauss e a mitologia ameríndia. “Isso não é tudo”, “ce n’est pas tout” é uma fórmula frequentemente empregada por Lévi-Strauss, a ponto de poder ser considerada um pequeno maneirismo do autor, para introduzir um desdobramento ou uma guinada na análise, ou encerrar uma demonstração com uma sequência inesperada de acordes. Ela aparece, eventualmente nas variantes “não é só isso” e “há mais”, um pouco em toda parte na obra lévi-straussiana, mas (provavelmente) aumentando sua frequência nas Mitológicas.

A “petite phrase de Lévi-Strauss” (chamo-a assim em homenagem à “petite phrase de Vinteuil” da Recherche), marca um passo estilístico típico: o surgimento quase prestidigitatório (se a palavra existe) de sempre mais um eixo, sempre “um outro eixo” de transformação, disposto de través, em diagonal aos vários eixos que vinham até ali guiando a comparação; a produção em finta ou pirueta de uma torção suplementar (a “torsion surnuméraire” ou “double twist” de que falaremos bastante neste curso) completamente imprevista, que abre subitamente uma progressão que tudo encaminhava para o fechamento; a revelação de vínculo extra, implicado, obscuro, compactado no texto sob análise que subitamente se explica e esclarece, e ao mesmo tempo se multiplica e difrata em perspectivas que, literalmente, perdem-se de vista no horizonte. Teremos ocasião de registrar vários momentos da demonstração ao mesmo tempo sinuosa e reticular, barroca e rizomática — le mot est jeté — abertos pelo “Isso não é tudo” nas Mitológicas. Na verdade, o movimento assinalado pela pequena frase ocorre muito mais frequentemente que ela; ela é opcional, mas o movimento, ao contrário, parece-nos necessário, intrínseco ao procedimento lévi-straussiano: “la démonstration peut être poussée encore plus loin.” (CC: 213; ou p. 201: “Il ne suffit pas de dire que, pour les Bororo etc.”; “le problème est loin d’être épuisé” (CC 316)); ou ainda, relativamente comum, a fórmula que desdobra uma oposição ou conjunto simples de oposições/transformações: exemplo típico, o mel e o tabaco em: “en fait, les choses sont beaucoup plus complexes” (MC 55). A petite phrase, eis a nossa tese, cumpre na verdade uma função conceitual fundamental dentro da economia teórica do estruturalismo.

Descobri recentemente que F. Keck [Pléiade 1787] fala no “méthode du ‘Ce n’est pas tout’ qui ajoute à l’intérpretation d’un myhte ou d’un rituel de nouveaux éléments destinés à la confirmer ou l’enrichir” — não fui assim o único a notar o maneirismo metódico. Mas Keck não tira deste método grandes lições, quando ao contrário penso que ele é muito importante. Ele aponta para o inacabamento da análise estrutural, e sugere as razões desse inacabamento: a fractalidade e rizomaticidade de todo objeto determinado pelo método estrutural, na medida em que esse objeto em geral é concebido sempre como um estado particular de um sistema de transformações cujos limites são contingentes. [E mais, definíveis sempre apenas de maneira relacional: ver Maniglier, Des us et des signes] A “in-terminabilidade”, no duplo sentido (sem fim ou término, e sem possibilidade de determinação unívoca do que é um termo e uma relação, do que é literal e figurativo etc. — ver, na Oleira Ciumenta, a analogia com o sexo dos caracóis) da análise mítica é um princípio absolutamente fundamental das Mitológicas, enunciado logo na Abertura do CC. Veremos que LS insiste no caráter aberto, intensivo, iterativo, em nebulosa, poroso, “conexionista” dos sistemas míticos que reconstrói. “Isso não é tudo”, então, porque nada é tudo, em nenhum momento se alcança uma totalização. “Isto não é tudo” supõe um conceito de estrutura e de análise que não privilegia uma vontade de fechamento, compleção, compacidade, a determinação de uma combinatória exaustivamente definida a priori. Com o “isso não é tudo”, começamos a divisar a possibilidade de pensar Lévi-Strauss como um pós-estruturalista. Isso não é tudo = fórmula canônia = devir.

HN 539: le propre de tout mythe ou groupe de mythes est d’interdire qu’on s’y enferme: un moment vient toujours, au cours de l’analyse, où un problème et qui, pour le résoudre, oblige à sortir du cercle que l’analyse s’était tracé. Le même jeu de transformations, qui permet de ramener l’une à l’autre les séquences d’un myhte donné, s’étend de façon quaise automatique à la séquence indécidable [* referência a uma idéia de Buchler & Selby sobre o caráter não-recursivo ou indecidível de uma transformação qualquer tomada como ponto de partida, e que CLS discute, mediante a idéia de que a indecidibilidade é relativa ao grupo de mitos que se toma, mas que toda transformação é recíproca em algum nível, com outra], mais tout de mêmne réductible en dehors du mythe à d’autres séquences indécidables… Toda a continuação dessa passagem crucial deve ser considerada.

HN 539: “…cet être du monde consiste en une disparité… Du monde, on ne peut pas dire purement et simplement qu’il est; il est sous la forme d’une asymétrie prémière…

Ainda a interminabilidade: a passagem do “Sexo dos Astros” em ASII p. 260, onde o autor diz que “Cada transformação mítica não supera a contradição em um eixo senão para reencontrá-la em outro eixo, e o número de parâmetros aumenta com cada tentativa de mediação.

Naturalmente, isso não é tudo… Lévi-Strauss irá insistir repetidas vezes nas Mitológicas sobre o fechamento do sistema que analisa, a redondez da terra da mitologia (mas também sua porosidade…), a completude do círculo que o leva das savanas do Brasil Central às costas brumosas do estado de Washington e da Columbia Britânica,e, localmente, sobre os vários fechamentos de grupos míticos menores. Será preciso então insistirmos, nós, sobre uma tensão interna ao pensamento do autor relativo à mitologia americana, a saber, sobre uma dialética da abertura e do fechamento analítico (e mítico) que caberá explorar, em suas aparentes contradições inclusive. [E note-se, porém, que um sistema não é uma estrutura; cf. a noção de transformação in Eribon] → Isso realmente não é tudo. A pequena frase pode ser usada para fechar a análise por um lado que parecia aberto. A ênfase no fechamento dos grupos, na coerência e homogeneidade do conjunto é sublinhada repetidas vezes no correr do texto, e atinge uma espécie de apoteose enfática no capítulo “O Mito Único” do Homem Nu. Por isso, é preciso sublinhar, eu, que estou fazendo uma leitura parcial, apostando na tensão que ora enfatiza a “vasta máquina combinatória que é todo sistema mítico” (HN p. 501) e o caráter grupal, fechado e coerente do seu “mito único”, ora fala em dinamismo, desequilíbrio, devir perpétuo, assimetria que sempre abre o mito po rum outro lado, etc. (coligir as inúmeras passagens). Essa tensão deve estruturar minha exposição.

Claude Lévi-Strauss, fundador do pós-estruturalismo… CLS certamente não é o último pré-estruturalista, mas é o primeiro pós-estruturalista. Ao dizer isso, em certo sentido, estaríamos antecipando a conclusão do presente livro, que tem como uma de suas principais intenções a de mostrar a atualidade do pensamento lévi-straussiano: pensamento da assimetria, da complementaridade, da torção e da abertura. Poderíamos ir para casa agora e dedicar o tempo a ocupações mais amenas. Mas felizmente, ou infelizmente, isto não é tudo… Além de que será preciso demonstrar minimamente o bem-fundado de minha tese, o livro tem uma outra intenção maior, que não se comprime tão facilmente em um ou dois parágrafos, a saber, a intenção de expor a originalidade radical do pensamento indígena, tal como transparece nos discursos míticos analisados nas Mitológicas.

Prosa & Verso

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/default.asp

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