quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Sozinho e bem-acompanhado: Eu sou a Lenda


Will Smith já cometeu erros, claro. Errou no sumamente estúpido As Loucas Aventuras de James West, em Bad Boys II (bem mais irritante ainda do que o primeiro, se possível) e no insípido Lendas da Vida. Mas faz algum tempo que ele perdeu esse hábito. Smith tem acertado sistematicamente na escolha de projetos que evidenciem sua capacidade inata para provocar empatia, como Hitch – Conselheiro Amoroso. E se sai melhor ainda quando o filme o faz aliar essa característica a uma outra, à qual ele nem sempre deu a devida importância: seu talento dramático, bem conhecido dos poucos que o viram, em início de carreira, em Seis Graus de Separação. No ano passado, Smith colheu tanto elogios como dólares graças a essa boa combinação, em À Procura da Felicidade. Agora, ele a repete, com mais sucesso ainda, em Eu Sou a Lenda (I Am Legend, Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país.

Refeitura de A Última Esperança da Terra, um pequeno clássico da ficção científica estrelado por Charlton Heston em 1971, o filme traz o ator como Robert Neville, um cientista que, até onde ele próprio sabe, é o único ser humano a ter sobrevivido inalterado a uma epidemia deflagrada por um vírus modificado para o tratamento do câncer. Os que não eram imunes, como ele, morreram em decorrência da infecção – ou foram mortos, de maneira selvagem, pelos homens e mulheres que, contaminados, se metamorfosearam em criaturas assemelhadas a vampiros. Como os vampiros, esses mutantes reagem até ao mais sutil cheiro de sangue. E, como eles também, não toleram a luz solar. Durante o dia, portanto, Neville circula em companhia de Sam, a inseparável fêmea de pastor alemão que o protege, por uma Nova York deserta, destruída e que está rapidamente sendo devolvida à natureza. Antes que a noite comece a cair, ele se recolhe à sua casa em Washington Square, que transformou numa espécie de fortaleza, da qual nenhum sinal de existência humana pode escapar. À parte alguns flashbacks, isso significa que, na prática, Smith está absolutamente só em cena durante mais de uma hora. Até que a brasileira Alice Braga entre na história (veja o quadro), já muito perto do desfecho, ele tem de gerar sozinho toda a ação dramática; tem de falar consigo mesmo sem parecer louco nem soar aparvalhado como um personagem do noveleiro Manoel Carlos; tem, enfim, de manter o interesse da platéia e a tensão do enredo contando apenas com os próprios recursos. É uma tarefa e tanto. Que Smith a cumpra de forma tão bem-sucedida é prova de sua competência e da argúcia com que tem selecionado os projetos que melhor ressaltem seus pontos fortes.

Um desses fortes, notoriamente, está no atletismo de Smith e na facilidade com que ele se deixa cercar por efeitos especiais sem ser ofuscado por eles. Eu Sou a Lenda calibra com cuidado esses elementos. Durante semanas, a produção transtornou o trânsito de Nova York, para rodar não com paisagens digitais, mas em locação, as cenas em que Neville circula pelas ruas abandonadas – uma decisão ideal do ponto de vista da verossimilhança e também do espaço que proporciona a um ator que quase sempre encontra o caminho para seus personagens por meio da ação física. O resultado é, por vezes, espantoso. Neville caça antílopes numa Times Square coberta de mato, disputando-os com leões (os animais, presume-se, escaparam do zoológico e agora correm soltos). Volta sempre a uma videolocadora em que vários manequins colocados nos corredores, para efeito de decoração, o consolam pela ausência de qualquer outra forma humana. Vive regido por cronômetros e alarmes, acertados segundo os horários diários do nascente e do poente, e transpira um medo palpável a cada vez que deixa escapar um minuto que seja. Durante a noite, quando os gritos dos mutantes chegam perto demais, ele tenta se esconder dentro da banheira, abraçado à sua cadela. E, o tempo todo, procura descobrir uma vacina para a infecção – o que, numa das seqüências mais eletrizantes do filme, o leva a montar uma armadilha num dos "ninhos" de mutantes, a fim de capturar um espécime vivo e levá-lo para seu laboratório.

Não é só pelo artesanato eficaz e pela presença de Smith – um dos maiores chamarizes de bilheteria de que Hollywood dispõe – que Eu Sou a Lenda já acumulou 400 milhões de dólares em menos de quatro semanas de exibição. O astro tem participação decisiva no desenvolvimento de seus projetos e demonstra aqui outro tipo de instinto – para os temas que estão mais à tona na imaginação do público em um dado momento. Eu Sou a Lenda recupera o enredo de A Última Esperança da Terra, mas toma muito mais ainda emprestado de Extermínio, o sucesso-surpresa lançado por Danny Boyle em 2002. Como no filme do diretor inglês, a manipulação biológica é o gatilho para um novo holocausto (em substituição à ameaça nuclear que imperou durante os tempos de Guerra Fria). As criaturas que surgem da contaminação ainda são seres humanos – mas seres humanos em que os traços mais violentos e agressivos enterraram todos os outros comportamentos. E a cidade deserta é, da mesma forma, um personagem crucial. O que Smith faz, com a colaboração do diretor Francis Lawrence, de Constantine, é ampliar esse cenário para dimensões apropriadas às de um astro de seu porte e colocá-lo para orbitar em torno de si. Nada aqui, nem as imagens e nem sequer as criaturas – que, a certa altura, se revelam em mais detalhe do que seria necessário –, tem mais relevância do que o protagonista, ou do que o ator que o interpreta. Para qualquer outro astro, à exceção já testada de Tom Hanks, essa seria uma direção arriscada. Smith, porém, usou seus erros para tomar as medidas exatas de seu carisma. Este é ainda maior do que se supunha. E, quanto menos houver em seu caminho, maior é o seu poder de magnetizar.

Isabela Boscov
VEJA. Edição 2043 - 16 de janeiro de 2008


Na Nova York pós-apocalíptica em que se passa Eu Sou a Lenda, o protagonista Robert Neville interage com apenas dois outros seres humanos: um menino, com o qual não troca palavra, e Anna, uma paulista que conseguiu escapar do holocausto genético num navio, rumo à Costa Leste americana. Com o papel de Anna, Alice Braga tirou um bilhete premiado – a oportunidade de ser a única atriz a contracenar com Will Smith numa produção de imenso sucesso. E, o melhor, recebendo elogios e sem ter de agüentar comentários sobre o excesso de gestos e de maquiagem, como os que sobraram para Rodrigo Santoro em 300. Mais até do que o colega (com o qual trabalha em Redbelt, o próximo filme do dramaturgo David Mamet), a paulistana Alice, com 24 anos passados quase todos no pedaço formado pelos bairros de Vila Madalena, Vila Ida e Vila Beatriz, está fazendo a América. Revelada por Fernando Meirelles com uma participação em Cidade de Deus, ela volta a trabalhar com o diretor em Blindness, adaptado de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Estará em Crossing Over, como uma imigrante ilegal. O papel é pequeno, mas os atores com os quais divide as cenas – Sean Penn e Harrison Ford – não. E já concluiu a filmagem de Repossession Mambo, em que é o segundo nome do elenco, entre Jude Law e Forest Whitaker. Alice continua firme também no cinema brasileiro: no segundo semestre, deve ser dirigida pelo ator e amigo Marco Ricca (com quem fez A Via Láctea) em Cabeça a Prêmio. "Não mudo daqui de jeito nenhum", diz a atriz, que, quando viaja ao exterior, torra fortunas em telefonemas para a família.

Alice está cumprindo o que é quase um destino anunciado. Seu pai, Ninho Moraes, foi durante anos diretor do programa de Marília Gabriela e hoje dá aulas de cinema e de jornalismo. Sua mãe, Ana, é montadora. Sua irmã, Rita, é produtora e assistente de direção. Vários primos e tios também trabalham no meio. Entre os quais Sonia Braga, de quem sua mãe é irmã mais nova. Mas desde seu desempenho surpreendente em Cidade Baixa, há dois anos, Alice vem rapidamente deixando de ser designada como "a sobrinha de Sonia". Talentosa, dona de um sorriso cativante e dedicada – como se pode aferir pelo inglês excelente que fala em Eu Sou a Lenda –, ela está muito perto de inverter os termos. Se continuar nessa ascendente, daqui a pouquinho Sonia é que terá de se conformar em ser chamada de "a tia de Alice".

http://iamlegend.warnerbros.com/


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