segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Diplo-MÁ-cia

A diplo-MÁ-cia brasileira tem tantas luzes quanto a lanterna que Hugo Chávez recomenda aos venezuelanos para suas orientações noturnas. Evite ligar a luz, porque as empresas estatizadas não podem responder às suas demandas! Banho, então, só de três minutos, pois mais o socialismo bolivariano não permite! Siga as instruções do “companheiro” Chávez, que já dita como as pessoas devem se conduzir em sua própria casa! Cuidado! Podem se tornar inimigas do povo se essas diretrizes não forem seguidas.

É essa Venezuela chavista, socialista, que procura repetir, com outras denominações, a experiência comunista do século 20, que a nossa diplo-MÁ-cia está propondo como novo membro do Mercosul, no mais completo desrespeito à cláusula democrática, que deve reger as relações entre os seus países-membros. De democracia a Venezuela só tem a fachada. É como a lanterna e o banho de três minutos no lugar da energia elétrica. Espera-se que os senadores tenham, agora, no plenário, mais descortino do que tiveram na Comissão de Relações Exteriores. O Brasil está a um passo de se tornar mero instrumento da política chavista.

Há um equívoco que tem sido utilizado pelas autoridades governamentais e, em particular, pelos seus responsáveis, no próprio Palácio do Planalto e no Itamaraty, relativo ao significado da democracia. Para eles, a democracia reduz-se a um ritual de eleições, como se não existissem outras condições. A sua alternativa é simples: se há eleições, há democracia; se não há eleições, não há democracia. Tomemos um exemplo. Hitler chegou ao poder por meio de eleições. Aliás, ele as utilizou para suprimir qualquer outra condição da democracia. Para os nossos diplo-MÁ-tas, porém, não haveria dúvidas: Hitler seria um democrata!

A América Latina está presenciando um fenômeno político de novo tipo. O socialismo ou, para sermos mais precisos, o comunismo está voltando com uma nova roupagem. Ele deveria ser mais precisamente denominado de “democracia totalitária”. Por quê? Pelo fato de estar utilizando instrumentos democráticos para subverter a própria democracia. E o faz por intermédio de institutos como referendos e assembleias constituintes, embasados em participações populares. Assim, seguindo esse raciocínio, uma assembleia constituinte poderia eliminar qualquer artigo constitucional, até mesmo aqueles que consideramos pétreos. Nesse sentido, uma assembleia constituinte, dado o seu caráter ilimitado, poderia abolir a igualdade racial ou a igualdade de gêneros.

O resultado desse processo consiste na destruição da democracia representativa, ou seja, do exercício da democracia feito pela afirmação das liberdades em geral, da liberdade econômica à liberdade política, passando pelas liberdades civis. A participação política deve fazer-se por instâncias e institutos de mediação, que são as leis, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de organização sindical e partidária, a igualdade de condições numa competição eleitoral e a existência da divisão de Poderes, que agem independentemente. Ora, o que faz a democracia totalitária? Silencia as oposições, suprime a independência do Poder Judiciário, submete o Poder Legislativo, fecha emissoras de rádio e de televisão independentes, criminaliza os adversários, considerados inimigos que devem ser abatidos.

A diplo-MÁ-cia brasileira, cada vez mais, assume uma feição bolivariana, comunista. Eis por que repete com tanta insistência que a Venezuela é “democrática”, por entender por democracia a sua feição propriamente totalitária. Pactua, portanto, com a subversão da democracia por meios democráticos, apoiando Chávez internamente e do ponto de vista externo. Vez por outra, apresenta um laivo de independência, como quando critica a verborragia chavista. Ora, a verborragia chavista é também um elemento do exercício totalitário do poder. Pense-se nos discursos torrenciais de Fidel Castro durante horas ou nos discursos de Hitler. São todos frutos da mesma árvore denominada totalitarismo.

Um dos argumentos utilizados pelos partidários de Chávez foi de natureza comercial. As exportações brasileiras para a Venezuela alcançaram nestes últimos anos o montante de US$ 5,15 bilhões, como se fosse o Mercosul que tivesse propiciado esse incremento. Primeiro, esse incremento se deu sem nenhuma zona de união comercial nem aduaneira, sendo fruto da relação normal desses dois países. Segundo, note-se que a Venezuela tem nos EUA seu maior parceiro comercial, sendo proprietária nesse país de uma extensa rede de postos de gasolina. Chávez vocifera contra o imperialismo ianque e continua fazendo benéficos negócios com ele. Não precisa entrar no Nafta para isso.

Lobbies de empresários atuaram para favorecer o ingresso da Venezuela totalitária no Mercosul, pois assim seus interesses mais imediatos estariam satisfeitos. A questão, contudo, reside nos interesses de médio e de longo prazos, pois uma vez Chávez no Mercosul ele terá poder de veto para negociações do bloco em relação a outros países e blocos. Considerando que suas posições são anticapitalistas, ele procurará sempre fazer valer essas posições, ao arrepio dos interesses empresariais em relação a outros mercados. Procurará, de todos os modos, torpedear as relações comerciais do Mercosul, e do Brasil em particular, com os EUA e a União Europeia.

Um dos argumentos de senadores foi o de que ele deveria passar a respeitar a democracia. Alguns mais afoitos chegaram a dizer que seria obrigado a assinar um acordo nesse sentido, de tal maneira que este passaria a valer em seu próprio país. O argumento é de uma pusilanimidade atroz, pois Chávez nem respeita referendos provocados por ele mesmo. Há, contudo, uma questão conceitual de maior alcance. Regimes totalitários vivem do desrespeito sistemático das palavras, vivem da mentira, que se torna um instrumento político entre outros.

Denis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O Globo

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