A realização de mais uma edição da Bienal do Livro em setembro, a décima quarta, contribuiu para ratificar a transformação deste evento em data fixa nos calendários das escolas do Rio de Janeiro. Passou a ser propaganda negativa para muitos colégios não percorrer com os seus alunos os corredores intransitáveis do abafado Riocentro, visitando estandes com a mais variada programação atrativa dirigida a crianças e adolescentes e que, por acaso, também vendem livros.
Vista como evento cultural de mobilização nacional, a Bienal tem superado, a cada ano, as expectativas de público visitante, consagrando-se como uma das mais bem sucedidas realizações culturais e empresariais do Brasil. O encerramento de suas atividades no último dia 20 de setembro provavelmente deixou satisfeitos todos os envolvidos na realização do mega-evento bibliófilo, desde editoras que ganharam curvas ascendentes em seus gráficos contábeis a escritores que lançaram seus novos livros, passando por famosos declamadores de textos literários que receberam uma notoriedade mais chique do que a de ser notícia em revistas de celebridades e afins.
Igualmente ficaram satisfeitos pais e professores que levaram os jovens que educam ao evento. Provavelmente devem ter sentido a bianual sensação de missão cumprida, do tipo "pronto, contribuí para que um jovem desenvolvesse o inestimável e necessário hábito de leitura".
Eventos do porte da Bienal do Livro, de fato, contribuem positivamente para o incentivo à leitura. No entanto, duas perguntas instigam o aprofundamento destas reflexões: até que ponto? Em que contexto?
Neste mês de setembro, observaram-se, na mesma mídia que divulgou a Bienal, notícias dos mais variados tipos que, indiretamente, esmaeceram o contexto positivo propagado por este evento na educação brasileira. Divulgaram pesquisas que traziam críticas aos altos preços dos livros no Brasil, informando ainda que 47% dos cariocas não têm o hábito de ler. Descreveram a batalha travada em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde professores estaduais (muitos provavelmente levaram seus alunos à Bienal ou os incentivaram a ir por conta própria) foram agredidos por policiais porque pleiteavam um salário inicial de R$ 1 mil em 2015 (até lá viveremos mais duas Bienais). E, para culminar, saíram os resultados da Pnad 2008, mostrando que o Brasil, além de não ter avançado no combate ao analfabetismo, possui ainda 30 milhões de analfabetos funcionais.
Como digerir essas informações em tempos de Bienal? Por que elas parecem tão incoerentes diante do contexto cultural do evento? É certo que a amenização de tais incoerências interessa a todos e resultará de mudanças a médio e longo prazo na educação brasileira. No curto prazo (próximos dois anos), talvez fosse mais profícuo modificar alguns aspectos da própria Bienal. Por que não incluir estandes de sebos, para garantir a compra de livros por preços mais acessíveis? Ou criar estandes em que os visitantes trocassem livros uns com os outros? Esses estandes poderiam ficar localizados nos pavilhões mais distantes da entrada, para não prejudicarem as vendas das editoras dos livros "zero quilômetro", que provavelmente pagam muito caro pelo aluguel de um estande estrategicamente melhor localizado.
Além de palestras e entrevistas com os escritores "da moda", como aquela que escreve livros sobre princesas pós-modernas ou aquela outra que retrata uma adolescente falando sério, em frases curtas e repletas de gírias, com todos a seu redor, a organização da Bienal poderia incluir na programação as mesmas palestras e entrevistas, só que ministradas por professores ou pessoas reconhecidas nos meios literários, que poderiam discorrer sobre escritores clássicos da Literatura Brasileira, esquecidos ou literalmente desconhecidos nos bancos escolares. Imaginem uma palestra sobre a carga metafórica do soldado amarelo em "Vidas Secas", de Graciliano Ramos? Ou uma leitura comparada entre os sonetos satíricos do poeta barroco Gregório de Matos e o atual noticiário político brasileirol?
Talvez essas reflexões estejam muito severas com o perfil sempre alegre e carnavalesco da Bienal do Livro. Provavelmente são reflexões amargas de uma professora de Literatura que, pela primeira vez em muitas edições, não foi e nem levou os seus alunos à XIV Bienal do Livro, em obediência cega às recomendações das autoridades sanitárias a respeito da gripe suína. Por conta dessas recomendações, as aulas do 2º semestre letivo foram adiadas em três semanas. E só recomeçaram sob a condição de os agentes escolares, em especial os professores, tomarem todas as precauções para evitarem aglomerações, lugares fechados, contato mútuo de fluidos respiratórios, ou seja, tudo que (além dos livros, é claro) tinha de sobra no local onde se realizou a Bienal.
Pelo que se sabe, o receio do contágio do vírus H1N1 não afetou significativamente a visitação escolar à Bienal, apesar de ter afetado o calendário letivo de milhares de alunos que, em muitos casos, terão controversas e discutíveis reposições das três semanas paralisadas. Preocupados com o que leram? Relaxem, essa é só mais uma das incoerências que se somará às muitas outras da contraditória, mas "imperdível, sob qualquer circunstância", Bienal do Livro.
Ana Lúcia da Costa Silveira - Professora de Literatura Brasileira do Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
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