'Os pássaros devem experimentar a mesma sensação, quando distendem suas longas asas e seu vôo fecha o céu... Ninguém, antes de mim, fizera igual' - Alberto Santos Dumont -
Para quase todos os brasileiros, o dia 20 de julho não passa de mais um dia comum. A data, no entanto, deveria ser reverenciada como um dos grandes momentos da nossa história. Nesse dia comemora-se o aniversário do maior e mais consagrado cientista brasileiro de todos os tempos. Em 20 de julho de 1873 nascia Alberto Santos Dumont, 'um mineiro que ousou voar como os pássaros e teve o desplante de realizar seu sonho aos olhos de todo o mundo. Nada de vôos secretos, numa praia deserta da Carolina do Norte, sem documentação imparcial, como fizeram os irmãos Wright. Não. Santos Dumont 'matou a cobra', repetidamente, para o delírio do povo de Paris, que testemunhou a audácia, a coragem e o jeitinho brasileiro de fazer ciência', como afirmou o pesquisador disse Miguel A.L.Nicolelis.
Em 19 de outubro de 1901, a bordo do seu dirigível número 6, Santos Dumont contornou a torre Eiffel e retornou ao seu ponto de partida, no campo de Saint-Cloud, em menos de 30 minutos. Demonstrava-se assim a possibilidade de controlar o vôo e de impor a vontade humana à máquina. Mas foi em 23 de outubro de 1906, em Campo de Bagatelle, em Paris, quando o 14-Bis voou por mais de 50 metros a uma altura de 2 metros, que Alberto Santos Dumont garantiu para si um prêmio e um lugar na história. O mineiro voou depois dos Irmãos Wright, sim, mas os americanos usaram, em 1903, uma catapulta e um biplano e não conseguiam 'pilotar', apenas planavam.
Nascido em 20 de julho de 1873, em Palmeira (mais tarde rebatizada com o nome de seu filho mais ilustre), região da Zona da Mata mineira, passou a infância em Minas Gerais, cercado pelas obras de Júlio Verne - que lhe deu, literalmente, asas à imaginação - e pelas narrativas históricas dos primeiros vôos em balões. O sexto de 10 filhos de um rico empreiteiro e fazendeiro de café chamado Henrique Dumont, desde jovem desenvolveu o seu lado inventor a partir das muitas e modernas máquinas utilizadas nos trabalhos com os cafezais. Completando o estudo em bons colégios de São Paulo, quando a família já morava em Ribeirão Preto, e após formar-se na Universidade do Rio de Janeiro, o rapaz provinciano, de estatura baixa e corpo franzino, muda-se para Paris (França) em 1891, aos 18 anos, com o intuito de desenvolver seus principais projetos. Lá, estudou física, química, mecânica e eletricidade, e especializou-se em aeronáutica após sua primeira experiência com balões. Desde jovem, Santos Dumont tinha duas obsessões em mente: a primeira era voar; a segunda, alcançar a fama.
Em 1898 seu primeiro balão (o Balão Brasil), voou sobre os céus de Paris. Seu próximo passo foi construir um veículo voador que fosse dirigível. O inventor acoplou um pequeno motor a gasolina e voilà , seu invento funcionou. Na tentativa de aprimorar a sua máquina de voar, sofreu alguns acidentes, chegando a admitir que, em alguns deles, fora 'salvo por milagre'.
O primeiro grande feito do brasileiro, que lhe valeu o reconhecimento e os elogios de personalidades como o inventor Thomas Edison, foi a ousada circunavegação da Torre Eiffel, em 1901, com seu dirigível nº 06. Era a primeira pessoa a dirigir um veículo aéreo num percurso previamente determinado - um avanço para a aviação comparável ao arranque automático, em 1911, para a indústria automobilística, que abriu caminho para a produção de carros em massa. Pelo feito na Torre Eiffel, recebeu o prêmio de 100 mil francos do Deutsch de La Meurthe, o maior importador de petróleo da França, e distribuiu o dinheiro entre seus mecânicos e os desempregados de Paris. Pelo 14-Bis, em 1903, que o tornou o primeiro homem a voar com uma máquina autopropulsionada e mais pesada que o ar, recebeu o prêmio Archdeacon, de 3 mil francos.
Durante 10 anos, Santos Dumont construiu 20 balões e aeroplanos, voou em todos eles e submeteu-se a todos os tipos de tensão e de descargas elétricas. Seu último vôo foi com o Demoiselle (donzela, em francês), o seu avião de nº 20, uma aeronave com motor de 35 HP e estrutura de bambu, semelhante aos ultraleves de hoje.
No fim de sua vida, Santos Dumont sofria de duas graves doenças, depressão crônica e esclerose múltipla. Com a saúde cada vez mais debilitada e vendo o seu invento ser cada vez mais utilizado como arma de guerra, começou a ter progressivas crises de depressão. Humanitário e pacifista, testemunhou com grande desgosto a capacidade de destruição dos aviões durante a Primeira Guerra Mundial. Os aviões, já então eficientes armas de guerra, tinham criado mitos, como o alemão Manfred Von Richtofen, o Barão Vermelho, na Primeira Guerra. A consagração dos irmãos Wright foi outro motivo de contrariedade. À medida em que o século XX intensificava sua escalada de violência, Santos Dumont se recolhia a seus estudos e aos discursos pela paz, tornando-se cada vez mais recluso e irascível.
Em 1931, ele volta ao Brasil para viver em Petrópolis (RJ), em uma pequena casa projetada por ele, a Encantada, hoje Museu Santos Dumont. No ano seguinte, a morte trágica. Conta-se que ao saber do emprego de aviões na Revolução Constitucionalista de 1932, foi tomado de forte depressão e, aos 59 anos, no dia 23 de julho, comete suicídio, se enforcando com uma gravata no Grande Hotel de La Plage, no Guarujá, litoral paulista. Se sua morte foi motivada pela desilusão com o uso bélico do avião ou se foi simplesmente conseqüência da terrível doença, nunca se soube com certeza. No início do século, ele chegara a autorizar que seus balões fossem usados para fins militares na França, mas com certeza não imaginava o poder de destruição que seu invento poderia adquirir. Morreu antes de ouvir falar em nomes como Spitfire, Kamikazes e 'Enola Gay'. Postumamente recebeu o título de marechal-do-ar e, por decreto, foi proclamado patrono da Força Aérea Brasileira (1971).
Uma curiosidade é que a certidão de óbito do invetor ficou desaparecida por cerca de 23 anos. O motivo da morte foi omitido desde a ditadura de Getúlio Vargas, quando criou-se a figura-mito do herói nacional. Os governantes acreditavam que um herói suicida não ficaria bem nos livros de história. Quando foi encontrada, dava como causa mortis um suposto 'Colapso Cardíaco'.
O homem que conheceu cedo a glória terminaria seus dias mergulhado na loucura e no desespero. Mas o seu nome permanece cravado na história como um dos grandes e poucos homens que mudaram definitivamente o curso dos acontecimentos.
A elegância de Santos Dumont
Além de pai da aviação, ele também foi uma das figuras mais elegantes e influentes de seu tempo. Algumas das melhores festas de Paris, reunindo a elite mundial, aconteciam em sua casa.
Um aspecto menos conhecido da biografia do aviador, além de sua ousadia, era sua excentricidade aliada a uma peculiar elegância - todos o conheciam por seu chapéu panamá, ternos com corte impecável e camisas de gola alta. Ele era uma das figuras mais festejadas de Paris.
Em seus jantares, reunia gente como: Louis Cartier (o joalheiro), princesa Isabel (filha de dom Pedro II), George Goursat (sofisticado escritor e cartunista), Gustave Eiffel (o arquiteto da Torre Eiffel), Rothschild (os bilionários), a imperatriz Eugênia (viúva reclusa de Napoleão III) e 'alguns reis, rainhas, duques e duquesas, tão numerosos que é impossível mencionar todos os nomes', escreve Paul Hoffman na biografia Asas da Loucura.
Muito rico, Dumont despertava a atenção de todos. Sim, ele era herdeiro de uma fortuna de meio milhão de dólares. Elegante, Dumont foi um dos primeiros freqüentadores do restaurante Maxim's, até hoje um dos mais badalados de Paris. A biografia de Hoffman é uma das melhores já escritas sobre o aviador. Nela revela-se não só o gênio, mas também o homem Santos Dumont - seus muitos amigos, além de sua homossexualidade.
A evolução dos seus balões
Em uma exposição de máquinas em Paris, Santos-Dumont viu um motor a explosão interna, movido a gasolina. Tratava-se de uma novidade, pois naquele final de século os veículos e as indústrias eram movidos por máquinas a vapor. Motores elétricos já existiam, mas eram rudimentares. O contato com esse motor foi de fundamental importância para o desenvolvimento de suas futuras experiências com balões e aeroplanos, possibilitando tornar realidade suas fantasias.
Balão Brasil
Santos-Dumont encomendou um balão à tradicional Casa Lachambre. Acompanhando pessoalmente todas as etapas da produção, desde o corte do tecido até a montagem da barquinha de vime, teve a oportunidade de aprender em detalhes como se construía um balão esférico e de introduzir inovações: era menor que os demais, com 103 m3 de volume; o cesto de vime era para uma só pessoa; as cordas, de seda japonesa como o invólucro, com pouquíssimo peso; corda-pendente mais longa. Embora alguns especialistas duvidassem que um aerostato de volume tão diminuto pudesse subir levando no cesto de vime um homem, o Balão Brasil, assim denominado, ganhou os ares de Paris.
Dirigível número 1
Introduzindo modificações técnicas para dar maior estabilidade, alterou o centro de gravidade de um balão comum alongando as cordas de suspensão da barquinha destinada ao tripulante, e também utilizou pela segunda vez a seda japonesa, tornando-o mais leve e permitindo suportar maior tensão. Assim construiu um balão em forma de charuto, com aproximadamente 20,2 m de comprimento por 3,5 m de diâmetro, propulsionado por um motor a gasolina de 4,5 HP, o primeiro de uma série. Foi a primeira vez que um motor a explosão interna, adaptado a um veículo aéreo, funcionou no ar.
Dirigível número 2
Colocou maior potência no motor que, movido a gasolina, acionava a hélice.
Dirigível número 3
Empregou pela primeira vez o gás de iluminação em lugar do hidrogênio, mais caro. O aparelho era afilado nas pontas e, para abrigá-lo, construiu um hangar especial, o primeiro do mundo.
Dirigível número 4
Pilotou sentado numa sela de bicicleta, de onde dirigia e controlava o motor, o leme de direção e as torneiras do lastro, que em vez de areia, compunha-se de 54 litros de água, guardados em dois reservatórios. Subiu com sucesso em 1º de agosto de 1900.
Dirigível número 5
Motor de 16 HP, com 41kg, e fabricado pelo próprio aeronauta. O balão, no entanto, chocou-se com um prédio de Paris e o cientista ficou pendurado a vinte metros de altura, mas saiu ileso.
Dirigível número 6
Custou cerca de 30 mil dólares. Contornou a torre Eiffel (1901) e voltou ao ponto de partida (o campo de aerostação de Saint-Cloud) em menos de uma hora. Pelo feito, conquistou em Paris o Prêmio Deutsch de la Meurthe. Com o mesmo dirigível tentou atravessar o Mediterrâneo (1902), mas caiu no mar, sofrendo seu segundo sério acidente.
Dirigível número 7
Um dirigível de corrida com o qual apareceu poucas vezes, reservando-o para provas de velocidade com outros inventores, que nunca apareceram.
Pulou o número 8 por superstição.
Dirigível número 9
O menor e o mais famoso dos dirigíveis de Santos Dumont, de 1903. Fez muitos passeios sobre Paris, sendo visto quase diariamente, descendo nas ruas das cidade, com o intuito de mostrar a versatilidade a capacidade de transportar do aparelho.
Dirigível número 10
Chamado dirigível-ônibus, tinha capacidade para dez passageiros. Feito em 1903.
Dirigíveis 11 a 14
Projeta o nº 11, um monoplano bimotor, e o nº 12, um helicóptero, em 1905, mas não os conclui. No mesmo ano, finaliza a construção do nº 13, uma aeronave com dois balões destinada a longas viagens, mas não obtém resultados práticos. Faz experiências com o dirigível nº 14 Trouville, na costa do Canal da Mancha.
14-Bis
Em julho de 1906, iniciou testes com um aparelho mais pesado que o ar, batizado de 14-Bis. A invenção possuía 11,5 metros de envergadura nas asas, 10 metros de comprimento e 4,81 metros de altura. Todo o conjunto pesava 290 quilos, contando com o aviador. Os assentos eram de seda japonesa, com armações de bambu e juntas de alumínio. Os franceses apelidaram o estranho aparelho de oiseau de proie (ave de rapina), ou canard, devido à semelhança com um pato. Os ingleses o chamavam bird of prey.
Em outubro, em Bagatelle, Paris, realizou o primeiro vôo mecânico do mundo, voando a dois metros do chão por cerca de sessenta metros. Em 12 de novembro do mesmo ano, voou em Paris a seis metros do chão ao longo de 220 metros com o 14-Bis. Com este feito ganhou a Taça Archdeacom, instituída para o primeiro aeroplano que com seus próprios meios se elevasse a mais de 25 m, e o prêmio do Aeroclube da França, para o primeiro avião que fizesse um percurso de cem metros.
O 14-Bis foi destruído durante um vôo malsucedido em 14 de abril de 1907. Na tentativa de conseguir estabilidade, Santos Dumont levantou e abaixou o nariz da aeronave várias vezes, mas o aparelho bateu contra o chão. Dumont costumava reutilizar peças na construção de novos aparelhos, e não teve pena nem mesmo do histórico 14-Bis. Seu motor equipou os engenhos de números 15, 16 e 18. A hélice e as rodas também foram reaproveitadas. Em 1956, ano em que comemoraram 50 anos do primeiro vôo do aparelho, foram feitas duas réplicas. Uma foi enviada à França e a outra está no Museu Aeroespacial da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Como foram feitas com material diferente do original, não voaram. Em 2002 as plantas do 14-Bis foram doadas à USP, que anunciou o desejo de construir uma nova réplica do avião.
Hydro-glisseur (1907)
Com deslizador aquático, o número 18 foi o precursor do hidroavião. No mesmo ano, havia feito experiências com o aeroplano nº 15 e com o dirigível nº 16, mas desiste desses projetos por não obter bons resultados.
1907-1909
Aperfeiçoou o aparelho Demoiselle ou Libellule, semelhante a um ultraleve, mas com hélice frontal, feito com bambu e seda que, com o piloto, pesava pouco mais de 100kg, e com um motor de 30 HP. Nele o cientista fez seu último vôo como piloto e atingiu uma velocidade média de 96 quilômetros por hora (1909).
Livro - A extraordinária vida de Santos Dumont
Autor: Paul Hoffman
Editora Objetiva
Em 2002, enquanto se comemorava nos Estados Unidos o centenário do primeiro vôo de uma aeronave mais pesada do que o ar - como feito dos irmãos Orville e Wilbur Wright -, a maioria dos brasileiros amargava um rancor pela injustiça ao trabalho de seu compatriota Alberto Santos Dumont. Afinal, o vôo dos americanos foi feito na surdina, com a ajuda de uma catapulta e com o testemunho de meia dúzia de pessoas. Nada comparável ao vôo do 14-Bis, largamente noticiado e visto por milhares em Paris. Mas a desforra veio na medida, com um livro lançado em 2003 justamente por um jornalista norte-americano.
Com seu 'Asas da Loucura', traduzido no Brasil, Paul Hoffman dá o devido crédito de pioneiro da aviação ao pequeno e franzino brasileiro que encantou Paris no início do século 20 ao sobrevoar a Torre Eiffel a bordo de um dirigível motorizado. Sua ousadia e excentricidade aliada a uma peculiar elegância - todos o conheciam por seu chapéu panamá, ternos com corte impecável e camisas de gola alta - o transformaram em um dos homens mais prestigiados da capital francesa nos primeiros anos do século.
Com uma narrativa recheada de detalhes saborosos, Hoffman mistura a trajetória de Santos Dumont na aviação, desde a primeira, e acidentada, viagem a bordo de um balão, com curiosidades da sua vida privada, marcada pela profunda timidez. Mas por trás da figura aclamada como herói pelos brasileiros, Hoffman mostra que existia um outro lado: o de 'gênio torturado'. Como define o autor, o aviador brasilero foi 'um espírito livre que buscava escapar do confinamento da gravidade, da rivalidade de seus companheiros aeronautas (...), dos estereótipos sexuais e mesmo ao destino de sua querida invenção'.
Seja por idealismo ou romantismo, a principal meta de Santos Dumont ao investir toda a sua energia e criatividade nas aeronaves era a de inventar 'uma tecnologia que revolucionaria os meios de tranporte e promoveria a paz mundial'.
O uso do avião para fins completamente díspares durante a Primeira Guerra acabou levando-o a uma profunda depressão. 'Os bombardeios das aeronaves - 'meus bebês', como as chamava - o perturbaram em particular, e ele se sentia culpado por sua invenção', relata Hoffman.
Desiludido, atormentado e afetado por uma esclerose múltipla, Santos Dumont se matou aos 59 anos em um hotel no Guarujá, litoral de São Paulo. (Giovana Girardi)
'Muitos meninos sonharam em ter uma máquina de voar que poderia decolar e pousar em qualquer lugar sem precisar de uma pista de pouso. No século 21, mesmo um poderoso industrial cosmopolita não pode voar até seu restaurante favorito, ao teatro ou a uma loja. Um único homem na história usufruiu essa liberdade. Seu nome foi Alberto Santos Dumont, e seu corcel aéreo era um balão dirigível.'
Relógio de pulso
Após muitas reclamações acerca da dificuldade de controlar seus vôos e tirar o relógio do bolso, Dumont encomendou a Louis Cartier o relógio de pulso. Em 1903 ou 1904 (nunca se chegou a um consenso sobre a data exata), o joalheiro resolveu o problema fazendo um relógio quadrado com pulseira de couro. Mas a invenção não é de Dumont: em 1500, a rainha Elizabeth I tinha um. Militares também já usavam o relógio e Dumont talvez tenha sido o primeiro civil a usar a peça.