"Donde viemos? Aonde é que nos leva o nosso caminho? Por que me é dado sentir que sou livre, enquanto que estou confinado, porém, dentro dos limites da minha personalidade, como numa prisão? Qual é o objetivo da labuta e do sofrimento? Será o sentido da vida revelado pela morte?" (Kennedy, Michael. Mahler, JZE, RJ, 1988:p.38)
Esta busca - e a certeza - de um mundo melhor, sempre esteve presente em Mahler, ainda que permeado por dúvidas e antagonismos típicos da era da incerteza que viva a Europa na virada do século. Um pouco de sua vida e sua obra - uma incessante e apaixonada busca pela Harmonia e por Deus - é contada aqui, através de um breve resumo biográfico.
A passagem do século XIX para o XX foi marcada por mudanças substanciais na cultura, ciências e artes da Europa. A era das vanguardas artísticas, que tornou as artes plásticas independentes da necessidade de representação fiel da natureza, abriu espaço para o cubismo com Picasso e o surrealismo com Dalí; o simbolismo na literatura tomou lugar da tradição romântica de descrições minuciosas e abriu espaço para metáforas poéticas, subjetivas; James Clerk Maxwell, Max Planck e Albert Einstein revolucionam a física com modelos de comportamento atômico que ultrapassavam a mecânica newtoniana, e o mundo conheceu a relatividade do espaço e do tempo; Sigmund Freud descobre a importância fundamental da psiquê em nossas vidas, o sutil limite entre o consciente e o inconsciente, inaugurando a psicologia como ciência; os irmãos Lumière inventam o cinema e George Eastman faz da fotografia uma arte popular; Gottlieb Daimler e Karl Benz inventam o automóvel.
Dentro de tão rico cenário, a música também gerou representantes destas profundas transformações de consciência, tendo como porta-voz o compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911), uma das personalidades mais marcantes e influentes do cenário musical europeu na virada do século.
Magro, baixo e atlético, Mahler foi durante sua vida um homem reservado e misterioso, de poucas palavras, mas de muita ação. Seus contemporâneos quase que não o conheciam como compositor, pois foi na atividade de maestro que adquiriu fama e fortuna; segundo dizem, um dos mais extraordinários regentes que a música já teve. Dono de uma enorme intuição estética e um profundo senso de conjunto, Mahler submetia os músicos da orquestra a longos e exaustivos ensaios, repetindo quantas vezes fossem necessárias as passagens que não satisfaziam seus altos padrões musicais, na intenção de extrair os melhores resultados na interpretação das obras. Seus esforços neste sentido - e que também lhe deram fama de ditador excêntrico e chato entre os músicos - renderam todas as glórias de sua vida.
Nasceu numa pequena aldeia na Bohêmia (hoje Áustria) chamada Kalischt, a 7 de julho de 1860, o segundo filho do casal Bernard Mahler e Marie Hermann. Seu irmão mais velho faleceu ainda criança e Gustav foi tido como primogênito. Cedo seu pai descobriu os dotes musicais de Gustav e incentivou-o assiduamente, trabalhando a duras penas para sustentar seus estudos, pois eram de família muito pobre e Bernard tinha sérios problemas com a bebida. Após a morte deste, Gustav sustentou toda a família de 6 irmãos e a mãe.
Após passar bons anos no conservatório estudando piano e composição, aos 20 anos de idade, Mahler decidiu tornar-se regente, começando num posto de maestro assistente em Hall, cidadezinha no norte da Áustria, em que regia pequenas comédias musicais e ainda varria o fosso da orquestra após cada apresentação. Mesmo com um repertório simples e aquém de sua capacidade, sua habilidade musical fez extrair magníficos resultados, que permitiu a ele pleitear postos melhores. Passou por Leipzig e Dresden, regendo óperas e concertos, sempre com a dedicação ao trabalho como ponto fundamental, o que suscitou a inveja de seus concorrentes.
Era um jovem assíduo, sério e dedicado, de enorme talento e profundamente comprometido com a música que tanto amava, e não foi difícil arrumar algumas brigas com administradores e regentes mais velhos que se sentiram ameaçados. Em 1888 foi indicado para a orquestra da Ópera de Budapest, uma casa tradicional mas que vivia seu pior momento financeiro, estando à beira da falência. Ao contrário do que seus detratores pensaram ao indicá-lo, ou seja, que ele afundaria com o teatro, Mahler em pouco tempo reorganizou a administração da casa, renovou o repertório e montou óperas inteiras de Wagner e Mozart com tamanho zelo, empenho e perfeição que se tornaram enorme sucesso, fazendo a casa dar lucro novamente. Sua fama começou a se espalhar pela Europa e já em 1891 estava emHamburgo, dirigindo a casa de ópera que antes pertencia ao lendário Hans von Bülow, que não poupou elogios a Mahler quando o ouviu reger pela primeira vez. Em 1892 passou por Londres a convite do Covent Garden para reger Wagner no Royal Opera House, e sua disciplina férrea incluiu estudos de inglês para conduzir a orquestra com mais segurança e desenvoltura. O sucesso foi imenso, o público gritava 'Mahler' e aplaudia incessantemente até ele aparecer no palco, repetindo a ação ao término de cada ato da ópera.
Mahler continuou sua carreira triunfal até o ponto culminante, o cargo musical mais cobiçado de toda a Europa: Maestro titular da Ópera Imperial de Viena. Mahler conquistou o posto em 1897, permanecendo nele por 10 anos e coroando sua carreira com o definitivo reconhecimento de seu meticuloso empenho em fazer a melhor música que podia. Pouco depois, em 1902, casou-se com Alma Schindler, descrita por vários biógrafos como 'a mulher mais bela de Viena'. Mas Mahler não estava satisfeito, apesar do sucesso profissional. Estava rico, bem casado, reconhecido internacionalmente, mas algo ainda o atormentava profundamente. Por que razão um músico tão completo, que havia triunfado na vida, alcançado o cargo mais importante que se podia almejar, insistia em passar todas as suas férias anuais - seu único tempo disponível - a escrever enormes sinfonias de expressividade ímpar, tão íntimas e ao mesmo tempo tão sólidas? Embora tivesse produzido muitas canções, algumas com acompanhamento ao piano e outras com orquestra, suas dez colossais sinfonias são a coluna dorsal de sua produção musical. Todas elas, apesar das enormes diferenças formais, formam um todo tão uno e coeso, que muito estudiosos se espantam com a capacidade de Mahler, sendo tão atarefado como regente, não deixar nunca outras obras interferirem em sua inspiração, preservando um estilo individual marcante e inconfundível. Obras de grande intensidade dramática, orquestração rica e linhas melódicas abundantes, que são a chave para o entendimento das idéias deste homem místico, solitário e melancólico. O próprio Mahler disse certa vez ao compositor Jean Sibelius: 'A Sinfonia é o mundo! A Sinfonia deve abranger tudo!' De fato, levando em conta a origem da palavra Sinfonia, que significa "soar em conjunto", podemos entender o quanto era caro a Mahler o sentido de transformar sons diversos em harmonia pura, organização musical das mais exigentes.
Filipe Salles, http://www.gustavmahlerfanclub.hpg.ig.com.br/
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