Nossa realidade está cada vez mais show.
Na semana passada, cerca de 1 bilhão de pessoas pararam tudo o que faziam para assistir pela televisão ao resgate dos mineiros no deserto d0e Atacama no Chile. O evento teve uma repercussão comparável à transmissão da chegada do homem à Lua em 1969 e à cobertura do 11 de Setembro, em 2001. Mas o episódio chileno não teve o sabor de uma conquista única, como fincar a bandeira americana no solo lunar, nem o amargor de um crime hediondo que resultou na morte de cerca de 3 mil pessoas em Nova York. O apelo do resgate na mina de San José revestiu-se de um simbolismo diferente, o da ressurreição. É o aspecto comovente do episódio. Além disso, o acontecimento exemplificou uma circunstância cultural rara: a da precedência do espetáculo sobre os fatos propriamente ditos. Trata-se do componente farsesco do fato. Um e outra, simbolismo e armação, demonstram que vivemos outros tempos, em que a realidade é cada vez menos real e mais contaminada pela ficção. Isso me faz relativizar o estatuto de heróis ostentado pelos mineiros. Se houve heróis, eles estão entre a equipe de resgate dos mineiros. Mas a expressão “os 33 heróis do Chile” já se consolidou como fábula.
A simbologia colaborou para criar a impressão encantatória e provocar emoções. Os significados esotéricos começam pelo número 33: a idade em que Jesus Cristo morreu, o número dos graus iniciáticos de muitas sociedades secretas. Há também a descida aos subterrâneos, à mansão dos mortos, de onde Cristo regressou, e, por extensão, a primeira viagem dos rituais simbólicos antigos de aperfeiçoamento místico. A viagem ao elemento terra mostra o caminho do indivíduo rumo à construção do castelo interior. Em seguida, o iniciado realiza a viagem da água, do ar e. por fim, é purificado pelo fogo. Ao experimentar os quatro elementos alquímicos, o indivíduo terá supostamente ultrapassado a matéria mundana, e atingido a perfeição espiritual, juntando-se à divindade. Tendo dominado seus instintos, a Razão Superior terá incutido no iniciado a consciência da mortalidade e da transcendência. Como resultado, dá-se o triunfo final do espírito sobre a matéria.
Nesse último sentido, é possível associar a aventura dos mineiros à iconografia maçônica: tal como os mineiros, que firmaram um pacto nos 69 dias em que permaneceram nas profundezas da terra, os construtores das catedrais medievais se fortaleceram quando criaram uma sociedade de mútuo socorro, que, com o passar dos tempos, passou de operativa a mística e filosófica, a uma forma de conhecimento gnóstico que compreendia a liberdade, igualdade e fraternidade – elementos análogos aos pilares cristãos da esperança, fé e caridade. Os instrumentos de trabalho dos pedreiros – o esquadro, a régua e o compasso – se converteram em símbolos da trajetória ascendente do espírito rumo à iluminação. Durante o resgate no deserto, a cápsula Fênix (nome do pássaro grego que renasce das cinzas) foi apoiada em uma estrutura que exibia as formas do esquadro, do compasso e da régua, do círculo armado sob o céu estrelado. Formou-se um templo a céu aberto, dedicado a São José (tradicionalmente, o padroeiro dos trabalhadores) que permitiu que o presidente chileno, Sebastián Piñera, dissesse pouco antes dos trabalhos começarem: “A terra vai parir 33 homens”. Quanta densidade alegórica nessa declaração!
O acaso (ou teria sido a Divina Providência?) assassinou metaforicamente esses homens, com o desmoronamento dos túneis da mina. Vítimas em potencial, usaram da tenacidade e da resistência para vencer no esforço sobre-humano da sobrevivência. Subiram um a um, de degrau em degrau, nos túneis irregulares que ligavam as profundezas à superfície, partiram das trevas em direção à luz. Tudo isso, porém, não lhes bastou. Quando eles perceberam que teriam uma nesga de esperança de sobreviver, os mineiros se reuniram para fechar um acordo segundo o qual eles cobrariam por reportagens e venderiam juntos os direitos a possíveis livros sobre o episódio. Deram atenção ainda maior aos detalhes de uma futura venda de direitos sobre a história para a produção de um filme... em Hollywood. Ou seja, no meio dos acontecimentos e das piores privações, eles já se imaginavam como personagens de um roteiro de Steven Spielberg ou Oliver Stone.
Quando saíram, já vinham com falas ensaiadas Um deles disse: “Sempre confiei em Deus e não perdi a esperança”. Outro, em tom trágico: “Estávamos nos devorando por dentro”. E completou afirmando que quase houve cenas de canibalismo. Este homem estabeleceu um intertexto com um dos acidentes mais sinistros do passado do Chile: o dos sobreviventes uruguaios do desastre aéreo em Mendoza, nos Andes, em 1972. Os que restaram foram obrigado a devorar a carne dos que haviam morrido, numa das cenas mais bárbaras já experimentadas por um povo civilizado – e felizmente não houve nem poderia haver transmissão televisiva.
A tragédia dos Andes, como ficou conhecida, bem como os eventos que citei anteriormente – chegada à Lua, 11 setembro – tiveram impacto mundial. Deram origem a livros de ficção e não ficção, de autoajuda e autoengano, filmes e séries de televisão. Mas certamente não havia da parte dos participantes desses fatos uma intenção imediata de gerar lucros com a venda de direitos de histórias para fabricar produtos culturais. A transformação em filme, livro etc. veio a seu tempo, como a consequência natural do interesse despertado pelas notícias. Agora testemunhamos não só um evento via-satélite, como à criação em tempo real de um enredo que deve render milhões para todos os futuros envolvidos. Antes do desfecho da história, ela já estava condicionada à venda de direitos autorais sobre ela – mais ou menos como fazem alguns escritores que já vendem a obra antes de terminá-la. A diferença para os “33” é que eles não são escritores nem artistas. São sujeitos históricos e ao mesmo tempo personagens da trama que vem sendo tecida à medida que a vão vivendo.
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Os mineiros por certo criaram uma história antes de ela terminar. Assistiram ao filme antes de ele ser rodado, montado e exibido. Viram o começo, em que cada um deles foi apresentado ao espectador, depois o acidente e a longa sequência do escuro, com gritos de desespero e manifestações de coragem e generosidade. Viram-se enfrentando perigos, sem deixar de entrar em conflito uns com os outros, até que uma autoridade maior, a do líder, se levanta e aplaca os ânimos. Emocionaram-se com as cenas de flashback, retratando a vida de cada um, seus problemas cotidianos, sua luta para ganhar o pão da família - e aqui há espaço para as mulheres brilharem. Viram o momento em que só lhes restava um pouco de leite e uma lata de atum, a reviravolta da esperança e finalmente a ressurreição, o parto de novas vidas, o recomeço e as cenas de choro no abraço dos entes queridos. E imaginaram a lição que teriam de aprender tão logo fosse içados aos raios de sol: é preciso aproveitar e faturar o máximo com o espetáculo, que deverá se comparar aos grandes filmes catástrofes, como As torres gêmeas, O destino de Posêidon, Tubarão e Titanic.
Em todo o episódio dos mineiros, a própria realidade já armou um show antes mesmo de se sucederem novos possíveis eventos. Ele promove a subversão da ordem supostamente natural das coisas. Se os próprios mineiros trataram o resgate como espetáculo, no meio de sua representação, isso leva a crer que o resgate da mina de San José só vai se realizar totalmente quando ela for representada pela ficção nos livros, nos programas, nos sucessos de bilheteria.
Já não se fazem mártires como antigamente. Que modalidade de novo heroísmo é essa? As civilizações da Antiguidade celebravam a jornada do herói como um percurso iniciático, em que o protagonista agia inconsciente em relação ao futuro. Enfrentava perigos e realizava façanhas salvadoras, animado por uma enorme força interior, revelando-se a si próprio para só então se converter em objeto de culto. Com algumas variações, este é o herói que nos acostumamos a admirar nos livros e vimos se reproduzir muitas vezes na vida real. Os “33” se autoinvestiram da condição de personagens importantes, de heróis em busca de uma proeza. São heróis por autopromoção, cujo grande mérito foi esperar pelo socorro. Estão soterrados pela própria cobiça e anseio por virar celebridades, vendendo-se tudo o que podem. Se alguém merece a condição de heroica é a esquipe de resgate. Mas ela não daria um bom filme.
Luís Antônio Giron, editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.
http://revistaepoca.globo.com
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