sábado, 9 de outubro de 2010

Vargas Llosa: em busca de um realismo rebelde


Mario Vargas Llosa, nascido em Arequipa, no Peru,em 1936, é um dos mais importantes representantes do chamado boom latinoamericano. A partir dos anos 60, sua biografia e sua bibliografia enriqueceram-se com livros e prêmios, desde o Leopoldo Alas até o Cervantes de 1994, passando pelo Biblioteca Breve, Formentor, Rómulo Gallegos, Príncipe Astúrias, Planeta, para citar apenas os mais importantes. Agora, recebe o Prêmio Nobel para coroar uma vida dedicada à literatura.

Várias linhas confluem nas obras do escritor peruano, intimamente ligadas a sua concepção teórica do romance. A relação entre uma realidade anterior à obra de arte e uma realidade representada é complexa. Sua visão não é estritamente literária, pois considera o escritor testemunha de seu tempo. Em sua cosmovisão, sem perder de vista que a ficção obedece às coordenadas do real, questiona a conceituação regionalista do romance tradicional hispano-americano com o propósito de constituir um universo independente.

Em “A casa verde”, “Conversa na catedral”, “A festa do bode”, cria um mundo que não reduz a realidade. É a realidade em si mesma, “mundo livremente escolhido pela memória e reconstruído a partir dela, em virtude de uma visão poética” que a torna um documento da aventura do homem. A realidade, integrada na obra, oferece-se nas ações, que nada mais são que as relações humanas em sua objetividade.

O romancista organiza, através de novos sistemas de expressão, um mundo ficcional coerente e sobrepõe uma ordem poética ao mundo que falsificou os valores da existência individual e desvirtuou os valores solidários. Procuram dar um sentido à realidade porque, como ele próprio afirmou, “a realidade é caótica; não tem nenhuma ordem. Em troca, quando passa ao romance, sim, tem uma ordem”.

Vargas Llosa assinala a abertura para as modernas estruturas da narrativa contemporânea. Incorpora à tradição hispano-americana técnicas de procedência tão diversa como as do nouveau roman, do impressionismo, do expressionismo, dos romances de aventuras (é leitor assíduo dos romances de cavalaria), a épica, o melodrama, o thriller e a canção de amor. Influíram em suas obras, de acordo com seu próprio testemunho, Flaubert, Tolstói e Faulkner.

A primeira notícia sobre Canudos veio-lhe após a leitura de “Os sertões” de Euclides da Cunha, obra de grande impacto na consciência nacional brasileira, amálgama de ensaio científico, panfleto e relato literário. “Sem Euclides”, afirma Vargas Llosa, “eu nunca teria escrito meu livro”. E sabiamente colocou a seguinte dedicatória: “A Euclides da Cunha no outro mundo e, neste mundo, a Nélida Piñon”.

Com “A guerra do fim do mundo” Vargas Llosa retoma seu interesse pelo romance de cunho épico e histórico. O alcance épico deriva do sopro de transfiguração artística com que forjou os protagonistas e as massas do drama de Canudos, num empenho de criação do “romance total” e de abarcar o mundo de modo absoluto. Parte de documentos históricos e os desconstrói para integrá-los à narração utilizando a obra de Euclides como um documento a mais. Reconstitui o Arraial, descreve a longa campanha militar e as quatro expedições que culminaram na morte de milhares de vidas e o do próprio Conselheiro. Entre os personagens, traçados com nitidez, ressaltam o anarquista Galileo Gali e o jornalista, sem nome, que não é míope por acaso.

História, mito e imaginário se conjugam nesse universo literário, tecido no plano do estético porém nutrido nas fontes do imediato. Ao inventar situações para construir uma obra de ficção, Vargas Llosa enriqueceu um episódio-chave da totalidade histórico-social do continente, que não compreendeu como um episódio isolado. Numa entrevista concedida em Roma ao jornal “I1 Tempo”, ilustrou o significado de seu romance: “Eu ressalto no meu livro a responsabilidade dos intelectuais que favoreceram o massacre [...] Tratou-se apenas da fome, da ignorância, da pobreza. Um equívoco que fez escola”.

A relação entre realidade e obra de arte é a que existe entre o que denominou realidade real e realidade fictícia. Questiona a arte, além de traduzi-la e recriá-la em vários níveis, deixando de considerá-la como consequência de uma verdade transitória: enraizada em período concreto da história imediata. Ao superar as velhas fórmulas do realismo tradicional, entende-o como um ato de rebeldia, uma representação horizontal e vertical do mundo. Com isso reforça a tradição social da novelística hispano-americana. Levado pela constatação do encontro violento de duas sociedades incomunicáveis em Canudos, Vargas Llosa mostra como os preconceitos, a intolerância, os temores e ambições políticas, levados ao extremo, podem conduzir ao fanatismo e à intolerância, incapaz de aceitar divergências... Como intelectual latino-americano, de aguda sensibilidade e consciência das injustiças, antes de tudo, um humanista, confirma o compromisso com sua sociedade e seu tempo. Considera que na América Latina contemporânea ainda há Canudos em muitos países, com o que associa o Brasil à América Hispânica numa integração cultural tão desejada e em gestação, como sua obra comprova.

Quando for receber o Prêmio Nobel, levará consigo seus personagens, fantasmas e obsessões, entre os quais o Brasil estará representado por Antonio Conselheiro, Galileu Gai, o jornalista míope, ao lado de Zavalita, Belisario, e a Chunga, expressão todos de sua posição humanista e liberal.

Como disse o personagem de “Tia Julia e o escrevinhador”, alter-ego do escritor, “a literatura, a coisa mais formidável do mundo”.

BELLA JOZEF é escritora, ensaísta e professora emérita da UFRJ, autora de “História da Literatura Hispano-Americana” e “Diálogos oblíquos”, entre outros

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa

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