terça-feira, 28 de agosto de 2007

Sonhos e pesadelos


ÉPOCA publica com exclusividade o primeiro capítulo do livro Sobre o Islã, que investiga as raízes do terrorismo e as afinidades entre muçulmanos, judeus e cristãos.
No dia 9 de novembro de 2001, Osama bin Laden e outros de seu grupo visitaram um religioso muçulmano recém-chegado a Kandahar, então o centro de poder do regime Talibã. O Afeganistão já vinha sendo bombardeado pelos americanos desde 7 de outubro, 26 dias depois dos atentados de 11 de setembro. Os próprios terroristas registraram o encontro numa fita de vídeo, que os americanos encontraram em Cabul logo depois de entrarem na cidade em 13 de novembro. A fita mostra todos numa sala sem móveis, sentados em cima de tapetes. O religioso e Bin Laden são tratados pela palavra árabe shaykh (xeque, em português), título atribuído a todos que têm alguma autoridade, seja política, seja espiritual. O xeque que estava sendo visitado explica que saíra clandestinamente da Arábia Saudita e que estava muito feliz por se encontrar num lugar limpo e confortável: “Eu achei que ficaríamos em cavernas nas montanhas”.

Ele então começa a elogiar Bin Laden pelos atentados às Torres Gêmeas e ao Pentágono. O clima é de confraternização, há alegria, risadas, com praticamente todos os diálogos entremeados de palavras de louvor a Deus. Dirigem muitos elogios aos “mártires” do 11 de setembro, pedem a Deus que eles sejam abençoados e que tenham a merecida recompensa no Paraíso. O xeque está especialmente feliz por uma outra razão: “Graças a Deus, eu soube que esse lugar aqui é também seguro”.
É assim mesmo: eles se rejubilam pelo martírio alheio, mas gostam de saber que o deles está distante. Conversa vai, conversa vem, e tem início uma espécie de torneio para saber quem conta a história mais sobrenatural em relação aos atentados de 11 de setembro. Parece uma disputa entre colegiais. Ou entre pescadores. Mas, na verdade, é uma conversa entre assassinos.
O primeiro a falar em premonição é o xeque saudita que recebe a visita de Bin Laden:

– Eu me lembro de uma visão do xeque Salih al-Shuaybi. Ele disse: “Haverá um grande estrondo e as pessoas irão às centenas ao Afeganistão”. De acordo com ele, os únicos que ficarão para trás são os mentalmente incapazes ou os hipócritas. Ele teve essa visão um ano atrás.

Bin Laden, de início, não se impressiona muito com o relato, até mesmo o ignora. Fala de outras coisas, pergunta qual a repercussão dos atentados na Arábia Saudita, nas mesquitas, nas ruas. E faz questão de dizer que tudo foi estudado com cuidado:

– Nós calculamos antes o número de vítimas com base na posição da torre. Nós calculamos que os andares atingidos seriam três ou quatro. Eu era o mais otimista de todos. Graças à minha experiência nesse campo, eu imaginei que o fogo produzido pela gasolina do avião iria derreter o aço da estrutura do prédio, e desabariam apenas a área contra a qual o avião se chocou e os andares acima. Isso foi tudo o que esperávamos.
Como todos sabemos, as duas torres desabaram integralmente: terrorista competente, mau engenheiro. Mas Bin Laden não se preocupa com o erro de cálculo. Pouco antes de relatar como tudo tinha sido estudado, ele já tinha comemorado o efeito de propaganda proporcionado pelo atentado. E exagera:

– As palavras foram entendidas por árabes e não-árabes, até mesmo pelos chineses. Superam tudo o que a mídia dizia. Alguns disseram que na Holanda, em um dos centros [islâmicos], o número de pessoas que aceitou o Islã nos dias que se seguiram às operações foi maior do que o número de pessoas que aceitou o Islã nos últimos 11 anos somados.
Logo, logo, porém, Bin Laden não resiste, entra na disputa pelo sobrenatural e começa a contar vantagem:

– Abu al-Hasan al-Masri me disse um ano atrás: “Eu vi num sonho. Nós estávamos jogando futebol contra os americanos. Quando nosso time entrou em campo, nós éramos todos pilotos!”. Ele me disse: “Então eu me perguntei se aquilo era um jogo de futebol ou um jogo de pilotos!”. Abu al-Hasan não sabia de nada sobre a operação até ouvir as notícias no rádio. Ele havia me contado que o jogo foi adiante e que nós derrotamos os americanos. O sonho foi um bom augúrio para nós.

O torneio agora começava para valer. Um homem, atrás da câmera, não se contém e entra na competição: “Abd al-Rahman al-Ghmanri me disse que teve uma visão, antes da operação: um avião se chocava contra um prédio muito alto. Ele não sabia nada sobre a operação”.
Outro terrorista, sentado ao lado de Bin Laden, sente-se desafiado e rebate com um sonho ainda mais revelador:

– Eu estava sentado com o xeque Bin Laden numa sala. Então, fui para outra sala, onde havia um aparelho de TV que estava transmitindo um grande evento. A cena mostrava uma família egípcia sentada na sala de estar. Eles explodiam de felicidade. Sabe quando tem uma partida de futebol e o seu time ganha? Pois é, era aquela mesma expressão de felicidade. Havia legendas na tela onde se lia: “Como vingança pelas crianças de Al-Aqsa, Osama bin Laden executa uma operação contra a América”. Então [no sonho] eu fui ao encontro do xeque Bin Laden, que estava numa sala com cinqüenta ou sessenta pessoas. Eu tentava dizer a ele o que eu tinha visto, mas ele me fazia um gesto com suas mãos, como quem diz: “Eu sei, eu sei”.
Al-Aqsa é a mesquita que fica em Jerusalém, a terceira mais venerada do Islã, e, ao mencioná-la, o terrorista quis se referir às crianças mortas na Intifada. Bin Laden, com um leve sorriso de orgulho, dá apoio ao seu amigo e fornece uma explicação sobre o sonho: “Muhammad Atta, de família egípcia, foi o responsável pelo grupo”.

O xeque que estava sendo visitado, diante de tantos relatos, deixa a timidez de lado e tenta ganhar o campeonato:

– Um avião batendo num prédio foi uma visão que muitas pessoas tiveram. Um homem muito religioso deixou tudo [na Arábia Saudita] e veio para cá. Antes, ele me disse: “Eu tive uma visão. Eu estava num avião enorme, comprido e largo. Estava carregando o avião nos meus ombros e eu andei da estrada ao deserto por meio quilômetro. Estava arrastando o avião”. Eu ouvi aquilo e rezei para que Deus o ajudasse. Outra pessoa me contou no ano passado o que tinha visto, mas eu não a entendi. Ela me falou: “Eu vi pessoas que partiam para o jihad e elas se davam conta de que estavam em Nova York, em Washington e Nova York”. Eu perguntei: “O que é isso?”. Ela me disse que o avião se chocava contra um prédio. Isso foi no ano passado! Eu não liguei muito para isso. Mas, quando os eventos aconteceram, ela veio para mim e disse: “Você viu? Isso é estranho!”. Eu tenho outro homem, meu Deus, ele me contou, e jurou por Deus que sua mulher tinha visto o incidente uma semana antes. Ela viu o avião batendo contra um prédio. Isso é inacreditável, meu Deus!

Talvez com a preocupação de afastar do xeque qualquer idéia de que as visões tenham sido motivadas por quebra de sigilo, Bin Laden rapidamente acrescenta:

– Os irmãos que conduziram as operações, tudo o que eles sabiam é que fariam uma operação de martírio. Nós pedimos que cada um deles fosse para a América, mas eles não sabiam de nada sobre a operação, nem sequer uma letra. Eles foram treinados e nós não contamos a eles sobre a operação até que estivessem lá, momentos antes de eles embarcarem nos aviões.

Outra voz na sala começa a revelar outro sonho, tido no mesmo período:

– Eu vi dois aviões vindo e eles causavam uma grande explosão. Tão grande que fiquei com medo de ver a cena. Quer dizer, eu sentia que havia alguma coisa. Então eu disse [no sonho] para o xeque Bin Laden: “Vamos embora”. Mas ele me disse: “Seja paciente”.

Nesse momento, o terrorista se emociona e faz um juramento, como que para provar que falava a verdade: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso! O xeque me disse [no sonho]: ‘Seja paciente. Seja paciente, talvez outras coisas venham a acontecer’”.

Alguém quer saber se o sonho tinha sido antes de o primeiro avião se chocar, e é informado de que tinha sido antes de todos os acontecimentos. O terrorista prossegue: “Então, veio a operação...”.

Bin Laden o interrompe para que ele próprio dê o fecho à história: no dia da operação, estava com um grupo grande, do qual fazia parte o rapaz do sonho, quando, pelo rádio, veio a notícia do primeiro avião: “Eles festejaram muito o primeiro avião. Pensaram que aquilo seria tudo. Eu então disse a eles: ‘Sejam pacientes!’”.

Ao ouvir o desfecho, o xeque que está sendo visitado não resiste e diz: “Por Deus, isso é surpreendente. Por Deus, xeque!”. Bin Laden sorri orgulhoso, coça a cabeça, e continua ouvindo elogios derramados ao sucesso de sua empreitada. Ao todo, a fita tem pouco mais de vinte minutos.
Não, eles não são loucos. Eles têm um projeto político mundial bem definido e vêm seguindo meticulosamente seu plano há mais de uma década. Para mim, um brasileiro de origem árabe, ver a religião de meu pai e de meu avô materno (que morou em nossa casa a vida inteira) ser usada para matar multidões sempre foi um choque enorme. No vídeo, os terroristas estão relaxados e falam em Deus o tempo inteiro. Na minha infância, minha família nunca foi das mais religiosas, mas nunca vi meu pai ou meu avô se sentarem à mesa sem antes dirigirem em árabe, baixinho, algumas palavras a Deus (embora jamais tenham esperado de nós, crianças, que tivéssemos a mesma atitude). Eram as mesmas palavras que ouço, agora, no vídeo. É perturbador.

Como podem envolver Deus nisso? Que processo leva essas pessoas a criar, a partir de uma religião que se quer pacífica, um dos movimentos políticos mais violentos que o mundo já viu, uma das maiores ameaças ao nosso estilo de vida, às liberdades essenciais do ser humano? Quem são essas pessoas? O que elas pensam? O que de fato querem?

Para tentar responder a essas perguntas, percebi que, antes, seria necessário explicar ao leitor o que é o Islã para que, depois, ele pudesse entender de que forma o terror deturpa a sua mensagem. Quando comecei a escrever o livro, dei-me conta de que eu devia evitar o caminho de mostrar mais o que o Islã tem de exótico. Apostei em dar ênfase ao que é familiar, ao que é comum, ao que é semelhante. Conversando com amigos judeus, sempre noto como é grande o desconhecimento sobre o Islã: a maior parte nem sequer tem idéia de que Moisés é um profeta respeitadíssimo, um dos precursores mais importantes de Maomé. Conversando com amigos cristãos, o mesmo acontece em relação a Jesus, uma das figuras mais citadas no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. É como se o Islã habitasse um mundo totalmente alheio a nós, apesar de estar absolutamente inserido na tradição judaico-cristã e ser fruto dela. Por que três tradições que têm uma origem comum, e são tão próximas, se vêem tão distantes?

Eu acredito que minha história familiar me possibilita um olhar especial sobre as três religiões monoteístas. Meu pai, Ahmad, nasceu na Síria e é muçulmano, assim como Hamed, meu avô materno. Meu pai veio para o Brasil em 1950, fugindo da pobreza, e meu avô desembarcou aqui logo depois da Primeira Guerra Mundial, pelo mesmo motivo. Na Bahia, meu avô se casou com uma brasileira cristã, Maria José, e dessa união nasceram minha mãe, Zeny, e meu tio Luiz, educados no Cristianismo. Meu pai e minha mãe tiveram quatro filhos, Mamede, Leila, eu e minha irmã gêmea, Samira. Eu me casei com Patrícia, judia, de família praticante.

Quando criança, era comum ver minha bisavó, Maria, em nossa casa, conversando com minha mãe e minha avó e, para impaciência delas, falando muito em Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ou no Menino Jesus de Praga, de quem era devota. Da mesma forma, meu avô e meu pai, como bons árabes, jamais falavam de planos futuros ou sucessos ou fracassos do presente sem se referirem, quase aos sussurros, a Deus, ora agradecendo, ora pedindo proteção. A partir do início da década de 1970, já bem idoso, meu avô passou a ouvir numa vitrola portátil o Alcorão, de manhã, de tarde e de noite. Minha avó, um pouco impaciente, não gostava muito, porque achava que a “ladainha”, como ela se referia à recitação melódica do Alcorão, poderia perturbar o resto da casa. Mas não permitia que ninguém tirasse do seu quarto um quadro com a imagem de Jesus. Meu avô tinha sempre à mão uma masbaha, um terço de 33 contas que é mais distração do que religião: na primeira rodada, a cada conta, deve-se repetir “Deus seja louvado”; na segunda rodada, “Graças a Deus”; na terceira, “Deus é grande”; e, ao fim das três rodadas, deve-se dizer, uma única vez: “Não há nenhum deus, senão Deus, e Maomé é o Seu profeta”. Pode-se repetir o processo infinitas vezes, para passar o tempo. Minha mãe, brasileira e cristã, nunca ia à missa, mas gostava de ter uma imagem de Cosme e Damião com uma lâmpada sempre acesa, talvez em gratidão pelos filhos gêmeos. E, quando voltava com meu pai de viagens freqüentes à Síria, trazia panos verdes que obtinha nos túmulos de imãs xiitas. Também guardava uma admiração grande por xeque Marmud, um religioso morto há alguns anos. Eu e meus irmãos estudamos em escolas católicas.
Quando casei, entrei em contato mais direto com a cultura judaica. Minha mulher, de ascendência polonesa, austríaca e húngara, é de uma família de judeus muito liberais, abertos, mas praticantes: procuram observar as principais datas, os pais dela, José e Dorothy, vão à sinagoga com certa freqüência e mantêm um grupo que estuda textos da religião semanalmente. Fui muito bem acolhido, e participo de todos os eventos, sempre que posso.

Esse caldeirão cultural do qual sou fruto me ajudou a ver onde as religiões se tocam e onde elas se afastam. O livro, porém, em nenhuma hipótese é de um devoto (de nenhuma das três religiões). Na primeira parte, para que essa perspectiva fique clara, eu abro o texto dizendo: “Era uma vez Deus”. Nas páginas seguintes, conto a saga de Deus tal como ela é narrada nos livros sagrados das três religiões: a Torá dos judeus (o Pentateuco do Antigo Testamento), os Evangelhos dos cristãos e o Alcorão dos muçulmanos, sem me importar com a “verdade histórica” de nenhum dos três. Na segunda parte, explico como nasceram as duas grandes divisões do Islã, sunitas e xiitas, e como o mapa do Oriente Médio tomou a forma que tem hoje. Na terceira parte, trato as questões que mais nos afligem no Ocidente: a violência no Islã, a misoginia, o apedrejamento de mulheres adúlteras e o uso do véu. Na quarta parte, discuto o conceito de fundamentalismo, atestando que seu uso é totalmente inadequado para definir os terroristas. Ainda nesta seção, analiso a origem do terror islâmico moderno, indicando onde e como seus principais teóricos adulteram a mensagem alcorânica. Na quinta parte, dedico-me a fazer uma retrospectiva da Guerra do Iraque, tentando entender o que a originou e discutindo o seu retumbante fracasso, até aqui.
Eu diria que essa foi a parte mais difícil. Em muitos momentos, fiquei tentado a abandoná-la. Eu me perguntava: será que vale a pena discutir a questão sem preconceitos quando quase todos já têm uma opinião cristalizada sobre o assunto? Não é um exercício inútil tentar enxergar nuances de cor onde, para a maioria, existem apenas o branco e o preto? Nadar contra a maré resultará em algo diferente da total incompreensão? No fim das contas, achei que não seria honesto comigo nem com os leitores escapar desse assunto. Afinal, não peço concordância, mas quero apenas externar um ponto de vista que não é certamente majoritário.

Estarei satisfeito se ao final do livro eu tiver conseguido alcançar dois objetivos. O primeiro, ressaltar que as três religiões monoteístas têm mais pontos em comum do que antes o leitor imaginava. O segundo, dar ao leitor ainda mais certeza de que nenhuma delas é base para o horror do terrorismo.

E uma última palavra: que os sonhos continuem sendo apenas a representação da realização dos nossos desejos.
Ali Kamel
Jornalista, é autor de Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo, lançado na semana passada
Revista Época, nº 484, 27 de agosto de 2007

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