O compositor alemão Johann Sebastian Bach criou, no século XVIII, obras que só seriam devidamente apreciadas no século XX. Era, em seu tempo, um músico do futuro. Costuma-se dizer o mesmo de Mozart e Beethoven – que, junto com ele, formam a tríade dos gênios incontestáveis da história da música –, mas isso é incorreto, porque ambos foram célebres em vida. Bach, não. Em sua época, os grandes centros musicais da Europa eram Viena, Londres, Paris, Roma, Veneza. Bach passou a vida em pequenos burgos da Alemanha recém-devastada pela peste e por guerras internas, longe do público e da crítica que contavam, num tempo em que não havia gravação e as notícias demoravam dias para chegar. Numa comparação com o mundo globalizado de hoje, em que a meca cultural é Nova York, era como se um compositor criasse obras-primas num vilarejo perto de Adis-Abeba. Sua música permaneceu no ostracismo até cerca de 100 anos depois que morreu. O livro 48 Variações sobre Bach, do estudioso suíço Franz Rueb (tradução de João Azenha; Companhia das Letras; 362 páginas; 33 reais), ajuda a esclarecer o milagre da ressurreição do compositor.
A obra é um misto de biografia, ensaio e análise musical. Através do livro, mapeia-se como Bach foi aos poucos voltando à tona. No século XIX, compositores como Mendelssohn, Schumann, Chopin e Berlioz "reabilitaram" a obra do músico alemão, contando com a ajuda de gigantes intelectuais como Goethe e Nietzsche. Na época, no entanto, conhecer suas partituras era como ter acesso à cabala. Só no século XX Bach saiu totalmente do limbo. Graças, em parte, ao fato de ter como grande divulgador o maior pianista dos últimos 100 anos, o canadense Glenn Gould. Hoje, dezenas de trilhas de filmes têm músicas de Bach, roqueiros fazem "releituras" eletrônicas de sua obra, jazzistas como Chick Corea compõem improvisos inspirados nele e até os ETs, teoricamente, têm acesso à sua arte: um CD com músicas de Bach foi lançado ao espaço em 1987 a bordo da nave Voyager, como amostra do que de melhor os terráqueos já produziram em matéria de criação artística.
Séquito de fortões
– O livro demonstra que Bach (1685-1750) tinha consciência de que compunha para o futuro. Um episódio quase folclórico exemplifica isso. Quando era diretor musical da corte na cidadezinha de Köthen, viu repentinamente sua verba minguar. O motivo: a mulher do príncipe local pressionou-o a usar o dinheiro da orquestra para criar uma guarda pessoal para ela. Segundo as más línguas, ela queria um séquito de fortões sempre dispostos a prestar "favores especiais". O que fez Bach? Aproveitou o tempo livre para criar O Cravo Bem Temperado, partitura que foi considerada pelo lendário pianista Hans von Bülow o "Antigo Testamento" da música para teclado (o "Novo" seria o conjunto das 32 sonatas de Beethoven). A Missa em Si Menor, obra-prima de Bach, nunca foi executada na íntegra durante a vida do compositor. Seus patrões em Leipzig, onde era músico de igreja, o impediam, por contrato, de produzir peças "operísticas demais" para o ofício religioso. Bach, então, criou a música na surdina e a engavetou. A primeira edição completa da partitura só veio à luz em 1845, e deixou todo mundo embasbacado. O músico alemão Johannes Brahms escreveu: "Custa-me acreditar que algo assim tão sublime e tão tocante possa ter sido obra de um homem".
Já se escreveu muita besteira sobre Bach, principalmente em teses acadêmicas. Por exemplo, que ele era anti-semita. Contribuiu para isso o fato de a Missa em Si Menor ter sido apresentada para 4.000 soldados alemães na Paris ocupada, em 1940, como demonstração da "superioridade" teutônica. O regente foi Herbert von Karajan, notório nazista. Em seu livro, Rueb mostra o absurdo dessa e de outras afirmações. A religião de Bach, a ideologia de Bach e a filosofia de Bach se resumiam numa única palavra: música. Ele compôs até no leito de morte, quando, doente e já cego, ditou uma peça vocal para o genro. Era o último capítulo de um legado inestimável à posteridade. A posteridade demorou, mas reconheceu seu talento.
João Gabriel de Lima
"Eu ouvia a música de Bach e me dizia: é como se a eterna harmonia se perguntasse o que teria ocorrido no seio de Deus pouco antes da criação do mundo. Tive a sensação de não possuir nem precisar de ouvidos, de olhos ou de qualquer outro sentido."
Johann Wolfgang von Goethe, escritor alemão, em 1827
"Com o tempo, as fontes ficam cada vez mais próximas. Beethoven, por exemplo, não precisou estudar tudo o que Mozart precisou. Cada um já assimilou seu antecessor. Só um compositor continuou a ser fonte inesgotável de ensinamentos: Johann Sebastian Bach."
Robert Schumann, compositor alemão, em 1834
"Durante a semana ouvi três vezes a Paixão Segundo São Mateus do divino Bach e a cada vez com o mesmo sentimento de infinita admiração. Quem desaprendeu totalmente a cristandade tem a chance de ouvi-la aqui como um evangelho."
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, em 1870
"Não sou capaz de traduzir em palavras tudo o que tenho aprendido e continuo aprendendo com Bach – naturalmente, como uma criança sentada a seus pés. Pois meu jeito inato de trabalhar é bachiano."
Gustav Mahler, regente e compositor austríaco, em 1901
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