domingo, 30 de março de 2008

Quadros do exílio

Taunay (detalhe) refugiou-se no Brasil entre 1816 e 1821, no reinado de dom João. Suas obras retratam o Rio de Janeiro, mas algumas paisagens exibem características européias.

Olhe o quadro acima. Ele foi pintado em 1818 no alto do terraço do convento de Santo Antônio, com vista para o Largo da Carioca. Mostra um Rio de Janeiro pacífico e bucólico, em que o sol ilumina as ruas e as nuvens dão sombra para a conversa de três frades. Ao lado dos religiosos, bananeiras, como se para provar que se trata de uma paisagem tropical, e não européia. Vacas andam plácidas pelas ruas quase desertas. Só com atenção se enxergam os escravos que encaminham a boiada. As ruas da cidade podiam ser de uma vila italiana, de tão serenas. Ao longe, vê-se o movimento dos navios atracados na baía, a marca de um país aberto. Um Brasil exótico, mas civilizável. “Tudo surge plácido, bucólico e em harmonia: cada qual em seu lugar”, descreve a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Em seu novo livro, O Sol do Brasil – Nicolas-Antoine Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João (Companhia das Letras, 390 páginas, R$ 55), Lilia reconta como um grupo de excepcionais pintores europeus retratou o Brasil joanino como se eles nunca tivessem cruzado o Atlântico.

Desde o título, o livro de Lilia se concentra na trajetória de Nicolas-Antoine Taunay, que chegou ao Brasil com sólida carreira de telas de paisagens e retratos históricos napoleônicos. E começa com uma surpresa. Ao contrário da historiografia oficial, dom João nunca encomendou uma “missão artística francesa” para retratar o país. Em geral, vieram artistas em fuga da restauração pós-napoleônica. Taunay escreveu ao monarca português uma carta que varia entre a bajulação e a humilhação, se oferecendo para “dedicar-se ao seu serviço e àquele de sua augusta família. Seja na qualidade de professor de desenho dos príncipes ou das princesas, seja ao me dar o cargo de conservador de seus quadros e estátuas”. O apelo funcionou e, em 1816, Taunay desembarcou no Rio de Janeiro contratado pelo prazo de seis anos com um vencimento de 800 mil réis, a mesma quantia de seu colega Jean-Baptiste Debret.

Mas, mesmo tendo deixado a Europa, a Europa nunca deixou Taunay. Melancólico, não se adaptou ao ensino e às dificuldades financeiras. Ao contrário de seus conterrâneos, Debret e o arquiteto Grandjean de Montigny, nunca foi um cortesão. Considerava o Rio de então uma provinciana cidade de 80 mil “almas” e dezenas de milhares de escravos, incapaz de entender a verdadeira arte. Reclamava do sol e das dificuldades em reproduzir as tonalidades da iluminação. Retratou a Floresta da Tijuca, onde morava, como se fosse uma mata temperada, incluindo espécies de árvores e animais europeus na paisagem tropical. Em 1821, ele voltou à França e, então, foram o Brasil e seu sol que não saíram mais de suas pinturas. “Taunay parecia um mal-entendido no Brasil e na França”, escreve Lilia Moritz Schwarcz. “Um artista francês vivendo passageiramente no Brasil. Já na França era (mal) recebido como um pintor que perdeu o talento por conta da vivência prolongada no Brasil. No Rio, as telas soavam excessivamente calmas e temperadas; já na França, seriam criticadas pelo excesso da cor, que era entendido como artificial.” Um estrangeiro em duas terras.

Thomas Traumann
Época - Ed. 514 - 24/03/2008

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