quarta-feira, 5 de março de 2008

Um teste vital para a liderança brasileira

Guerras entre nações sul-americanas são a última coisa de que precisamos. O Brasil, cuja última guerra regional terminou em 1870 e desde então vive em paz com seus 11 vizinhos, tem enorme interesse na prevenção e na solução de conflitos bélicos entre países da região. Esse interesse é reforçado, hoje, pelo fato de que nosso país é visto como um parceiro confiável, que dialoga bem com todos, gere sua economia com sensatez e êxito, promove a mobilidade social de seu povo e respeita as regras democráticas. Uma situação de enfrentamento militar teria reflexos negativos para nós e para todos os países da região. No atual momento, não se pode descartar o risco de um conflito armado, pois, uma vez insufladas as emoções guerreiras, é difícil fazer prevalecer a racionalidade, como a História tantas vezes demonstrou, em particular em agosto de 1914. A situação é, de fato, delicadíssima.

Permita-me recordar que, em janeiro de 1995, poucos dias após a explosão do conflito entre Peru e Equador, o recém-iniciado governo do presidente Fernando Henrique Cardoso convocou uma reunião no Rio de Janeiro para buscar uma saída diplomática. A ela compareceram representantes dos dois Estados em combate e quatro mediadores: Argentina, Chile,Estados Unidos e, como coordenador, o Brasil. A luta cessou imediatamente e, ao cabo de três anos, foi assinado, em Brasília, em outubro de 1998, na presença de todos os presidentes do Continente, do rei de Espanha e do presidente de Portugal, o Tratado que estabeleceu a paz definitiva. Agora que rufam novamente os tambores da guerra entre Colômbia, Venezuela e Equador se impõe uma presença diplomática brasileira que não seja intrusiva nem tome partido de uns contra os outros, mas contribua efetivamente para a pacificação dos litigantes.

Creio pessoalmente que o coronel Chávez está dando mais uma prova de sua falta de equilíbrio e de seu aventureirismo. Em primeiro lugar,porque o incidente militar (grave, sem dúvida) se passou na fronteira do Equador com a Colômbia, ou seja, a mais de mil quilômetros da fronteira da Venezuela. Em segundo lugar, porque - embora a Venezuela interfira sistematicamente nos assuntos internos da Colômbia dando suporte e dinheiro a uma organização clandestina e criminosa como são as Farc - a Colômbia não intervém na Venezuela. Em terceiro lugar, porque a sua verdadeira motivação é outra.Trata-se de um expediente velhíssimo, que Maquiavel bem conhecia e aconselhava ao príncipe: arranjar um inimigo externo para fortalecer uma posição interna enfraquecida. Depois da derrota no referendo constitucional, das abundantes más notícias econômicas e do bloqueio dos bens da PDVSA, o coronel precisava de um tônico político. Aí as Farc (estimuladas pelas centenas de milhões que o coronel lhes repassou, segundo seus próprios documentos) libertaram alguns seqüestrados e Chávez se arvorou como o grande benfeitor. Agora, joga com os sentimentos anticolombianos históricos na Venezuela, enraizados em velhos litígios de fronteiras, para rufar os tambores da guerra e fazer seu povo enrolar-se na bandeira.

Só o Brasil tem trânsito junto às partes e autoridade política para fazer uma intervenção pacificadora, que evite o desforço militar. Estará o nosso governo disposto a engajar-se a fundo nessa tarefa diplomática? Não se devem subestimar as dificuldades. De outra parte, não se trata - por ora pelo menos - de um exercício que tenha um suporte institucional, como no caso do conflito Peru-Equador, em que desde 1942 estavam definidas as bases da conciliação. As partes não solicitaram, por ora, nenhum tipo de mediação e se pode duvidar que o farão. Os mais complicados obstáculos, porém, são de outra natureza.

Em primeiro lugar, neste caso, nossa atuação teria de começar por uma postura enérgica contrária a opções militaristas. Seria preciso dizer ao coronel Chávez e ao presidente Uribe simplesmente que o Brasil não aceita que eles se lancem a uma guerra. Não há nenhuma clareza sobre a reação do venezuelano, que, afinal, foi quem começou a falar e a agir belicosamente. Há algum tempo que é possível encontrar nas iniciativas da Venezuela um propósito antibrasileiro, como no caso da nacionalização da Petrobrás na Bolívia. Pode-se dizer, sem muito risco de erro, que Chávez, em sua megalomania, vê em Lula o único rival pela liderança sul-americana e, portanto, procura dificultar-lhe o caminho. Se assim é, como reagiria a uma posição forte do Brasil que lhe pudesse atrapalhar o estratagema do inimigo externo?

Em segundo lugar, há que reconhecer que o governo brasileiro tem dado mostras de alguma compreensão e até de simpatia pela Venezuela bolivariana, a despeito de tudo.Mais ainda, tem sido complacente com as Farc, uma organização que trafica com drogas, seqüestra e mantém pessoas em cativeiro por anos a fio e não é, como se poderia depreender das palavras de alguns integrantes do governo, um partido político de esquerda. Esse fato pode dificultar também a receptividade colombiana para uma mediação brasileira.

Mesmo com todas essas dificuldades, porém, é importante que o Brasil assuma sua responsabilidade histórica. Um bom sinal é a aparente decisão do presidente Lula de incumbir o ministro Celso Amorim de desempenhar a tarefa. Uma opção institucional e profissional é, sem dúvida, preferível a uma escolha pessoal ou partidária. Mesmo porque, em assuntos dessa gravidade, estão em jogo interesses de Estado e não de um partido. O Itamaraty sabe disso há 200 anos - desde que foi criado, por d. João VI, em 1808 - e, assim, opera com êxito internacionalmente reconhecido.

Luiz Felipe Lampreia, ex-ministro das Relações Exteriores (1995-2001)

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