Cartas de Madre Teresa, recém-publicadas em livro, revelam a angústia da "santa do século XXI" que durante décadas não sentiu a presença de Deus.
“Pelo que é que trabalho? Se não há Deus, não pode haver alma. Se não há alma, então, Jesus, você também não é verdade.” Palavras de Madre Teresa de Calcutá, beatificada pela Igreja Católica e a caminho de ser considerada santa.
A aflição que as palavras de Madre Teresa revelam está numa carta de 1959 a seu então confessor, padre Lawrence Picachy. Ela faz parte de um livro com a correspondência de Madre Teresa que acaba de ser lançado em inglês com o título de Come Be My Light (Venha Ser Minha Luz). O livro reacende o debate sobre um dos aspectos mais intrigantes da vida da fundadora da Ordem das Missionárias da Caridade: a “escuridão” espiritual em que viveu praticamente desde que teve início seu trabalho de cuidar dos pobres em Calcutá, Índia, em 1948, até sua morte, em 1997. Depois de viver dois anos de profunda união com Jesus, nas palavras dela mesma, as mensagens de Jesus e as visões que a levaram a iniciar seu trabalho de caridade cessaram, e ela viveu o resto da vida, salvo uma breve interrupção em 1959, “sem sentir a presença de Jesus nem em sua alma nem na eucaristia”.
Quem expressa dessa forma o drama de Madre Teresa não é nenhum ateu ou alguém contrário a sua santificação. É o organizador do livro com as cartas dela, padre Brian Kolodiejchuk, o canadense responsável pela postulação da causa de sua canonização.
“Então, o que é mais impressionante: que os fiéis devam corajosamente confrontar-se com o fato de que uma de suas heroínas praticamente perdeu a fé ou que a Igreja continue usando como ícone de publicidade favorável uma velhinha confusa sabendo que, para todos os efeitos práticos, perdeu a fé?”, escreveu o crítico e jornalista Christopher Hitchens, colunista de ÉPOCA. Ateu militante, Hitchens foi chamado pelo Vaticano em 2002 a testemunhar contra a beatificação de Madre Teresa. Ele já conhecia as cartas.
Os religiosos têm outra interpretação. Longe de afastá-la do ideal de santidade, a “noite escura” de Madre Teresa a coloca numa longa tradição de santos que experimentaram a ausência de Deus de algum modo. O termo “noite escura”, usado por Kolodiejchuk no processo de beatificação de Madre Teresa, foi tomado de empréstimo de São João da Cruz. O místico e poeta espanhol do século XVI descreveu esse silêncio e a ausência de Deus como um dos passos da ascese espiritual. No caso de São Paulo da Cruz, no século XIX, esse período durou 45 anos e passou. Santa Terezinha morreu em 1897 ainda imersa em sua “noite escura”.
O primeiro confessor de Madre Teresa a saber de sua crise deu a resposta ortodoxa da Igreja: “Sentimentos não são necessários e freqüentemente podem ser enganosos”. Nos anos 1950, seu então confessor disse a ela que o simples fato de ela querer tanto sentir a presença de Jesus era prova suficiente de que ele estava lá: ela não deixara de ter fé. De fato, além da carta citada acima, só há mais uma em que Madre Teresa chega a cogitar a inexistência de Deus.
Hitchens já comparou Madre Teresa a um comunista soviético que no fim da vida tivesse percebido que aquilo não daria certo. Não acreditava mais, mas não podia admitir, sob o risco de parecer ter vivido em vão. Madre Teresa dificilmente terá vivido em vão. Além disso, em uma de suas cartas anteriores à crise, diz querer imitar Jesus apenas em sua Paixão. Pois foi pregado na cruz que Jesus, ele mesmo, sentiu a “escuridão” e disse “Senhor, Senhor, por que me abandonaste?”. Foi o primeiro na longa tradição que Madre Teresa seguiu.
Marcelo Musa Cavallari
Revista Época, nº485 - 03/09/2007
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