Damião Leite de Sousa, 31 anos, era um homem bonito e de porte atlético. Naquele sábado de maio de 2006, depois de ajudar a mãe, Teresinha, 72 anos, nas compras de supermercado, vestiu com cuidado seu melhor terno. Afinal, seria o padrinho de casamento de um grande amigo, em Teresina (PI). Planejando encontrar a namorada no fim da noite, subiu em sua moto e partiu em direção à igreja.
Por volta das 22 horas, Damião deixou a cerimônia rumo à casa da namorada. No caminho, um taxista que fazia uma ultrapassagem na contramão bateu de frente com a moto do rapaz. Muito ferido, ele ainda teve forças para pedir ajuda ao motorista do táxi, que, no entanto, não o socorreu. Não demorou para que o motociclista perdesse os sentidos e começasse a sangrar pela boca e pelo nariz.
Generosidade
A advogada Maria dos Remédios Sousa Lima Bedran, 49 anos, irmã de Damião, estava em São Luís (MA) quando recebeu o telefonema da família informando que o irmão havia sofrido um grave acidente. Ela voltou imediatamente para Teresina. Quando chegou ao hospital, na manhã do dia seguinte, encontrou a família desesperada e ouviu a terrível notícia: Damião estava na UTI, inconsciente, vítima de trauma cerebral.
Poucas horas depois, na sala de reuniões da UTI, Maria dos Remédios, ao lado do pai, Abílio, da mãe, Teresinha, e de outros irmãos, foi informada pelo médico de plantão de que Damião sofrera morte cerebral e jamais se recuperaria.
Hesitante, ciente do sofrimento da família, o médico dirigiu-se a Maria dos Remédios:
– A senhora já pensou em...
– ...doar os órgãos de Damião? – Maria dos Remédios completou.
Enquanto pensavam no assunto, um dos irmãos, Francisco, contou a Maria dos Remédios que, meses antes, Damião tivera uma conversa com ele sobre doação de órgãos depois de assistirem ao anúncio de uma campanha sobre o tema. Agora, ao pensar no irmão que morria, Francisco desejou que Damião sobrevivesse em outras pessoas que precisavam de transplante.
– Como podemos enterrar órgãos que estão vivos? – ele perguntou a Maria dos Remédios.
Depois de acompanhar os exames que constataram a morte cerebral do irmão, Maria dos Remédios e Francisco convenceram os pais que o certo era doar os órgãos de Damião. A família – os pais e os 11 filhos – seguiu passo a passo todo o processo.
A generosidade da família de Damião transformou – e salvou – vidas. Um homem, já incapacitado para o trabalho, fazendo hemodiálise diariamente e com pequena perspectiva de sobrevida, recebeu um dos rins de Damião e, oito meses depois, voltou ao trabalho. As córneas ajudaram duas crianças cegas a terem a visão restituída. O coração seguiu para um receptor em Curitiba e o fígado também foi doado. Maria dos Remédios ficou muito emocionada quando, um dia, recebeu um telefonema do homem que havia recebido o rim agradecendo o gesto que salvara sua vida.
Falta de órgãos
A história de Damião é tocante, mas, infelizmente, rara. “Há uma carência muito grande de doadores em todo o país”, observa o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Valter Garcia. Segundo ele, no Brasil são feitos por ano apenas cerca de 15 mil transplantes, e a fila de espera é de 70 mil pessoas. Ano passado, o número de pessoas que morreram enquanto aguardavam doadores variou de 5% a 30%, dependendo do órgão. O Brasil tem índices de doação mais baixos que o Uruguai, o Chile e a Argentina.
São 760 as instituições brasileiras que realizam transplantes. Dados do Registro Brasileiro de Transplantes informam que, de 7,3 doadores por milhão de habitantes em 2004, o Brasil passou a ter 6,4, em 2005, 6,0 em 2006 e chegou a 6,2 em 2007. “Apesar da recuperação na taxa de doação no segundo semestre de 2007, medidas organizacionais e educacionais devem ser reforçadas para retomar o crescimento continuado dessa taxa”, diz Valter Garcia. “O Brasil tem centros de transplante de nível internacional. É o país que realiza o maior número de procedimentos desse tipo pela rede pública. Mas a captação de órgãos não é eficiente”, diz o professor Silvano Raia, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pioneiro no transplante de fígado no Brasil.
O principal motivo para a falta de órgãos é a desorganização na captação. Faltam pessoas capacitadas para fazer a identificação dos possíveis doadores e a manutenção artificial dos órgãos do potencial doador que teve morte cerebral. E a maioria dos hospitais descumpre a lei que os obriga a notificar às centrais de doação os diagnósticos de morte encefálica. “Alguns médicos mal preparados, por medo ou preconceito, nem sugerem a doação à família. É um momento de perda de uma pessoa querida e é preciso saber abordar. Mas quanto mais eficiente for a abordagem, melhor será o resultado. O Brasil capta apenas 1/4 do que precisa”, diz o professor de Cirurgia Geral da Faculdade de Medicina da UFRJ, Joaquim Ribeiro, doutor em transplantes pela Universidade de Paris e presidente da ONG Grupo de Fígado do Rio de Janeiro.
No caso de morte cerebral os hospitais são obrigados, por lei, a notificar e comunicar à Central de Transplantes. Desde 2001, os hospitais com UTI deveriam formar comissões intra-hospitalares, cuja função é incentivar a doação de órgãos. O Ministério da Saúde prevê a publicação, ainda sem data marcada, de uma portaria estimulando a criação de “brigadas”, grupos de busca ativa de potenciais doadores. Eles vão trabalhar nas grandes emergências dos estados brasileiros, em parceria com as comissões intra-hospitalares. Não vai haver duplicidade de atuação, pois essas brigadas serão integradas por psicólogos, de modo a fazer a abordagem mais correta aos familiares do potencial doador, num momento tão complexo.
Processo de doação
É preciso derrubar alguns mitos sobre a doação de órgãos. Embora muitas pessoas acreditem que sua religião não permite a doação, quase todas as principais religiões a entendem como um ato humanitário. Além disso, os médicos responsáveis pelo transplante só são chamados depois de feitos todos os esforços para salvar a vida do paciente. Quando a morte encefálica (ou cerebral) é declarada e confirmada por dois exames clínicos e um exame de imagem, os médicos podem receber a autorização para a captação de órgãos e tecidos.
O processo de doação dura, em média, 24 horas, e o corpo então é liberado para os trâmites do enterro. Os cortes da cirurgia são cuidadosamente costurados, de modo que é possível manter o caixão aberto durante o funeral. Segundo Valter Garcia, não há sequer como identificar o corpo de um doador. Os planos de saúde cobrem a doação de córneas e rins, mas a maioria dos transplantes é feita pelos hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde). Muitos segurados desconhecem a cobertura que os planos oferecem para esses dois tipos de transplantes, acrescenta Valter Garcia.
Os órgãos transplantáveis são: coração, pulmões, rins, fígado, intestino e pâncreas. Os tecidos são: córneas, valvas cardíacas, osso, pele, tendões e ligamentos. E existe ainda o transplante de células, como o de medula óssea.
Enquanto um número maior de pessoas não concordar com a doação, e os médicos hesitarem na hora de pedir às famílias os órgãos de seus parentes, pacientes continuarão morrendo desnecessariamente. “As pessoas não querem perder aqueles que amam, mas têm de entender que a morte cerebral é irreversível”, diz Maria dos Remédios. “Graças a Deus tem alguém vendo o mundo com os olhos do meu irmão”, emociona-se ela.
Promessa
Em 2003, a bióloga carioca Miriam Alves Pereira ficou surpresa quando sua mãe, Geralda, zeladora de uma igreja, anunciou que precisava de um transplante de fígado por causa de uma cirrose provocada pela hepatite C contraída em uma transfusão de sangue. Geralda teve complicações no parto da filha caçula, Elaine, e precisou da transfusão. “Sempre vi minha mãe trabalhando, cheia de energia e saúde, cuidando dos quatro filhos”, lembra Miriam, 35 anos. Ela ficou preocupada, mas otimista; acreditava que o sistema de saúde brasileiro encontraria um fígado para sua mãe.
Miriam tentou, em vão, conseguir transplante no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte. Chegou a cogitar a possibilidade de um dos filhos doar parte de seu fígado para a mãe; isso, no entanto, poderia colocar a vida deles em risco. A idéia foi descartada. Mas, no início de 2006, dois meses depois de ter abandonado a idéia, Miriam viu sua esperança se renovar com a possibilidade de a mãe receber um fígado provisório, que garantiria sobrevida até se encontrar o órgão ideal.
A família tratou de fazer todos os exames necessários para a realização do transplante. “A doença estava evoluindo muito rapidamente. Minha mãe já apresentava ascite e passou a sofrer de encefalopatia hepática. Ela perdia a lucidez: colocava detergente em vez de água no copo, esquecia o próprio nome. E descobrimos que havia desenvolvido um câncer no fígado”, lembra-se Miriam.
Então, em março de 2006, Geralda teve falência múltipla dos órgãos e faleceu. Se tivesse feito o transplante a tempo, poderia estar viva hoje. “Sinto muita falta de minha mãe, me sinto sozinha e em débito com ela. Falhei em minha promessa de que conseguiríamos fazer o transplante”, diz Miriam. “Só me resta contar sua história e esperar que as pessoas se sensibilizem e decidam se tornar doadores.”
Intenção e ação
Um levantamento do Ministério da Saúde feito após realização de uma campanha nacional pela doação de órgãos verificou que é de apenas 28,25% a rejeição à doação por parte das famílias de potenciais doadores com morte encefálica. Mas, como mostram as estatísticas, a intenção de doar não necessariamente se traduz na doação de fato. “As pessoas devem expressar seu desejo de doar. A doação no Brasil só é feita com a autorização da família. Se esta conhece a vontade do parente, tem a sensação de missão cumprida. Foi o que senti, porque na nossa casa conversamos e apoiamos a doação. E sei que existem pessoas que rezam pelo Damião, o que é muito importante”, diz Maria dos Remédios.
A bordadeira Rosemary Guirado lembra-se do dia em que o filho Felipe Augusto Guirado, ainda adolescente, pediu-lhe que o registrasse como doador de órgãos. Foi quando ela descobriu que bastava uma autorização da família para a doação. “Felipe era um garoto muito generoso. Sempre dividia tudo com os amigos”, lembra a mãe. “Mas, durante muito tempo, esqueci desse pedido dele.”
Anos depois, porém, em julho de 2004, as palavras de Felipe ecoaram na mente de Rosemary. Aos 21 anos, ele foi atropelado por um carro em alta velocidade e arremessado a mais de 20 metros de distância em uma avenida de Belo Horizonte conhecida como “corredor da morte”. “Quando vi meu filho, sabia que ele estava praticamente morto. No hospital, um neurologista me disse que a mão do homem já não podia fazer mais nada por Felipe”, recorda-se Rosemary.
A mãe então se lembrou da conversa com o filho. “Quando a morte encefálica foi confirmada, eu disse a meus outros filhos: vou cumprir a vontade de Felipe. Eles, a princípio, ficaram surpresos, mas concordaram. A equipe do MG Transplantes (Central de Transplantes de Minas Gerais) me tratou com muito carinho e respeito. Meu filho tinha certeza de que queria salvar vidas. Sinto conforto nesse fato.”
Graças à generosidade de Felipe e sua família, a vida de sete pessoas foi transformada. Poucos meses depois da morte do filho, Rosemary estava assistindo a uma entrevista de um rapaz transplantado, de 31 anos, que havia recebido um rim e agradecia publicamente a doação feita pela família do doador chamado Felipe. “Fiquei muito emocionada. Ele dizia que meu filho tinha salvado sua vida e que ele agora poderia voltar a trabalhar e criar seus dois filhos.”
“Acho que Felipe foi uma pessoa maravilhosa. Foi generoso até o último momento de sua vida. É muito duro passar por uma perda, mas não podemos ser egoístas. Sinto muito orgulho do meu filho”, afirma Rosemary.
Por que doar?
• As principais religiões entendem a doação como um ato humanitário.
• Antes de ser declarada a morte encefálica (confirmada por exames clínicos e de imagem), todos os esforços são feitos para salvar a vida do paciente.
• O processo de doação dura, em média, apenas 24 horas.
• A doação não impede que se mantenha o caixão aberto durante o funeral.
• Planos de saúde e SUS cobrem alguns tipos de transplantes.• Apenas 28,25% das famílias consultadas rejeitam a doação.
Claudia Rodrigues
Seleções - Maio de 2008
http://www.selecoes.com.br/
Por volta das 22 horas, Damião deixou a cerimônia rumo à casa da namorada. No caminho, um taxista que fazia uma ultrapassagem na contramão bateu de frente com a moto do rapaz. Muito ferido, ele ainda teve forças para pedir ajuda ao motorista do táxi, que, no entanto, não o socorreu. Não demorou para que o motociclista perdesse os sentidos e começasse a sangrar pela boca e pelo nariz.
Generosidade
A advogada Maria dos Remédios Sousa Lima Bedran, 49 anos, irmã de Damião, estava em São Luís (MA) quando recebeu o telefonema da família informando que o irmão havia sofrido um grave acidente. Ela voltou imediatamente para Teresina. Quando chegou ao hospital, na manhã do dia seguinte, encontrou a família desesperada e ouviu a terrível notícia: Damião estava na UTI, inconsciente, vítima de trauma cerebral.
Poucas horas depois, na sala de reuniões da UTI, Maria dos Remédios, ao lado do pai, Abílio, da mãe, Teresinha, e de outros irmãos, foi informada pelo médico de plantão de que Damião sofrera morte cerebral e jamais se recuperaria.
Hesitante, ciente do sofrimento da família, o médico dirigiu-se a Maria dos Remédios:
– A senhora já pensou em...
– ...doar os órgãos de Damião? – Maria dos Remédios completou.
Enquanto pensavam no assunto, um dos irmãos, Francisco, contou a Maria dos Remédios que, meses antes, Damião tivera uma conversa com ele sobre doação de órgãos depois de assistirem ao anúncio de uma campanha sobre o tema. Agora, ao pensar no irmão que morria, Francisco desejou que Damião sobrevivesse em outras pessoas que precisavam de transplante.
– Como podemos enterrar órgãos que estão vivos? – ele perguntou a Maria dos Remédios.
Depois de acompanhar os exames que constataram a morte cerebral do irmão, Maria dos Remédios e Francisco convenceram os pais que o certo era doar os órgãos de Damião. A família – os pais e os 11 filhos – seguiu passo a passo todo o processo.
A generosidade da família de Damião transformou – e salvou – vidas. Um homem, já incapacitado para o trabalho, fazendo hemodiálise diariamente e com pequena perspectiva de sobrevida, recebeu um dos rins de Damião e, oito meses depois, voltou ao trabalho. As córneas ajudaram duas crianças cegas a terem a visão restituída. O coração seguiu para um receptor em Curitiba e o fígado também foi doado. Maria dos Remédios ficou muito emocionada quando, um dia, recebeu um telefonema do homem que havia recebido o rim agradecendo o gesto que salvara sua vida.
Falta de órgãos
A história de Damião é tocante, mas, infelizmente, rara. “Há uma carência muito grande de doadores em todo o país”, observa o presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Valter Garcia. Segundo ele, no Brasil são feitos por ano apenas cerca de 15 mil transplantes, e a fila de espera é de 70 mil pessoas. Ano passado, o número de pessoas que morreram enquanto aguardavam doadores variou de 5% a 30%, dependendo do órgão. O Brasil tem índices de doação mais baixos que o Uruguai, o Chile e a Argentina.
São 760 as instituições brasileiras que realizam transplantes. Dados do Registro Brasileiro de Transplantes informam que, de 7,3 doadores por milhão de habitantes em 2004, o Brasil passou a ter 6,4, em 2005, 6,0 em 2006 e chegou a 6,2 em 2007. “Apesar da recuperação na taxa de doação no segundo semestre de 2007, medidas organizacionais e educacionais devem ser reforçadas para retomar o crescimento continuado dessa taxa”, diz Valter Garcia. “O Brasil tem centros de transplante de nível internacional. É o país que realiza o maior número de procedimentos desse tipo pela rede pública. Mas a captação de órgãos não é eficiente”, diz o professor Silvano Raia, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pioneiro no transplante de fígado no Brasil.
O principal motivo para a falta de órgãos é a desorganização na captação. Faltam pessoas capacitadas para fazer a identificação dos possíveis doadores e a manutenção artificial dos órgãos do potencial doador que teve morte cerebral. E a maioria dos hospitais descumpre a lei que os obriga a notificar às centrais de doação os diagnósticos de morte encefálica. “Alguns médicos mal preparados, por medo ou preconceito, nem sugerem a doação à família. É um momento de perda de uma pessoa querida e é preciso saber abordar. Mas quanto mais eficiente for a abordagem, melhor será o resultado. O Brasil capta apenas 1/4 do que precisa”, diz o professor de Cirurgia Geral da Faculdade de Medicina da UFRJ, Joaquim Ribeiro, doutor em transplantes pela Universidade de Paris e presidente da ONG Grupo de Fígado do Rio de Janeiro.
No caso de morte cerebral os hospitais são obrigados, por lei, a notificar e comunicar à Central de Transplantes. Desde 2001, os hospitais com UTI deveriam formar comissões intra-hospitalares, cuja função é incentivar a doação de órgãos. O Ministério da Saúde prevê a publicação, ainda sem data marcada, de uma portaria estimulando a criação de “brigadas”, grupos de busca ativa de potenciais doadores. Eles vão trabalhar nas grandes emergências dos estados brasileiros, em parceria com as comissões intra-hospitalares. Não vai haver duplicidade de atuação, pois essas brigadas serão integradas por psicólogos, de modo a fazer a abordagem mais correta aos familiares do potencial doador, num momento tão complexo.
Processo de doação
É preciso derrubar alguns mitos sobre a doação de órgãos. Embora muitas pessoas acreditem que sua religião não permite a doação, quase todas as principais religiões a entendem como um ato humanitário. Além disso, os médicos responsáveis pelo transplante só são chamados depois de feitos todos os esforços para salvar a vida do paciente. Quando a morte encefálica (ou cerebral) é declarada e confirmada por dois exames clínicos e um exame de imagem, os médicos podem receber a autorização para a captação de órgãos e tecidos.
O processo de doação dura, em média, 24 horas, e o corpo então é liberado para os trâmites do enterro. Os cortes da cirurgia são cuidadosamente costurados, de modo que é possível manter o caixão aberto durante o funeral. Segundo Valter Garcia, não há sequer como identificar o corpo de um doador. Os planos de saúde cobrem a doação de córneas e rins, mas a maioria dos transplantes é feita pelos hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde). Muitos segurados desconhecem a cobertura que os planos oferecem para esses dois tipos de transplantes, acrescenta Valter Garcia.
Os órgãos transplantáveis são: coração, pulmões, rins, fígado, intestino e pâncreas. Os tecidos são: córneas, valvas cardíacas, osso, pele, tendões e ligamentos. E existe ainda o transplante de células, como o de medula óssea.
Enquanto um número maior de pessoas não concordar com a doação, e os médicos hesitarem na hora de pedir às famílias os órgãos de seus parentes, pacientes continuarão morrendo desnecessariamente. “As pessoas não querem perder aqueles que amam, mas têm de entender que a morte cerebral é irreversível”, diz Maria dos Remédios. “Graças a Deus tem alguém vendo o mundo com os olhos do meu irmão”, emociona-se ela.
Promessa
Em 2003, a bióloga carioca Miriam Alves Pereira ficou surpresa quando sua mãe, Geralda, zeladora de uma igreja, anunciou que precisava de um transplante de fígado por causa de uma cirrose provocada pela hepatite C contraída em uma transfusão de sangue. Geralda teve complicações no parto da filha caçula, Elaine, e precisou da transfusão. “Sempre vi minha mãe trabalhando, cheia de energia e saúde, cuidando dos quatro filhos”, lembra Miriam, 35 anos. Ela ficou preocupada, mas otimista; acreditava que o sistema de saúde brasileiro encontraria um fígado para sua mãe.
Miriam tentou, em vão, conseguir transplante no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte. Chegou a cogitar a possibilidade de um dos filhos doar parte de seu fígado para a mãe; isso, no entanto, poderia colocar a vida deles em risco. A idéia foi descartada. Mas, no início de 2006, dois meses depois de ter abandonado a idéia, Miriam viu sua esperança se renovar com a possibilidade de a mãe receber um fígado provisório, que garantiria sobrevida até se encontrar o órgão ideal.
A família tratou de fazer todos os exames necessários para a realização do transplante. “A doença estava evoluindo muito rapidamente. Minha mãe já apresentava ascite e passou a sofrer de encefalopatia hepática. Ela perdia a lucidez: colocava detergente em vez de água no copo, esquecia o próprio nome. E descobrimos que havia desenvolvido um câncer no fígado”, lembra-se Miriam.
Então, em março de 2006, Geralda teve falência múltipla dos órgãos e faleceu. Se tivesse feito o transplante a tempo, poderia estar viva hoje. “Sinto muita falta de minha mãe, me sinto sozinha e em débito com ela. Falhei em minha promessa de que conseguiríamos fazer o transplante”, diz Miriam. “Só me resta contar sua história e esperar que as pessoas se sensibilizem e decidam se tornar doadores.”
Intenção e ação
Um levantamento do Ministério da Saúde feito após realização de uma campanha nacional pela doação de órgãos verificou que é de apenas 28,25% a rejeição à doação por parte das famílias de potenciais doadores com morte encefálica. Mas, como mostram as estatísticas, a intenção de doar não necessariamente se traduz na doação de fato. “As pessoas devem expressar seu desejo de doar. A doação no Brasil só é feita com a autorização da família. Se esta conhece a vontade do parente, tem a sensação de missão cumprida. Foi o que senti, porque na nossa casa conversamos e apoiamos a doação. E sei que existem pessoas que rezam pelo Damião, o que é muito importante”, diz Maria dos Remédios.
A bordadeira Rosemary Guirado lembra-se do dia em que o filho Felipe Augusto Guirado, ainda adolescente, pediu-lhe que o registrasse como doador de órgãos. Foi quando ela descobriu que bastava uma autorização da família para a doação. “Felipe era um garoto muito generoso. Sempre dividia tudo com os amigos”, lembra a mãe. “Mas, durante muito tempo, esqueci desse pedido dele.”
Anos depois, porém, em julho de 2004, as palavras de Felipe ecoaram na mente de Rosemary. Aos 21 anos, ele foi atropelado por um carro em alta velocidade e arremessado a mais de 20 metros de distância em uma avenida de Belo Horizonte conhecida como “corredor da morte”. “Quando vi meu filho, sabia que ele estava praticamente morto. No hospital, um neurologista me disse que a mão do homem já não podia fazer mais nada por Felipe”, recorda-se Rosemary.
A mãe então se lembrou da conversa com o filho. “Quando a morte encefálica foi confirmada, eu disse a meus outros filhos: vou cumprir a vontade de Felipe. Eles, a princípio, ficaram surpresos, mas concordaram. A equipe do MG Transplantes (Central de Transplantes de Minas Gerais) me tratou com muito carinho e respeito. Meu filho tinha certeza de que queria salvar vidas. Sinto conforto nesse fato.”
Graças à generosidade de Felipe e sua família, a vida de sete pessoas foi transformada. Poucos meses depois da morte do filho, Rosemary estava assistindo a uma entrevista de um rapaz transplantado, de 31 anos, que havia recebido um rim e agradecia publicamente a doação feita pela família do doador chamado Felipe. “Fiquei muito emocionada. Ele dizia que meu filho tinha salvado sua vida e que ele agora poderia voltar a trabalhar e criar seus dois filhos.”
“Acho que Felipe foi uma pessoa maravilhosa. Foi generoso até o último momento de sua vida. É muito duro passar por uma perda, mas não podemos ser egoístas. Sinto muito orgulho do meu filho”, afirma Rosemary.
Por que doar?
• As principais religiões entendem a doação como um ato humanitário.
• Antes de ser declarada a morte encefálica (confirmada por exames clínicos e de imagem), todos os esforços são feitos para salvar a vida do paciente.
• O processo de doação dura, em média, apenas 24 horas.
• A doação não impede que se mantenha o caixão aberto durante o funeral.
• Planos de saúde e SUS cobrem alguns tipos de transplantes.• Apenas 28,25% das famílias consultadas rejeitam a doação.
Claudia Rodrigues
Seleções - Maio de 2008
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