Tudo bem, sejam corruptos; mas, com elegância... Há vários anos, assistimos ao show de grampos, flagrantes, juras de inocência, provas cabais, evidências solares, júris comprados e sabemos que a Polícia Federal prende, mas que o labirinto da lei é tão intrincado que, do outro lado, todos sairão livres, leves e soltos. Até hoje, houve 800 casos de corrupção comprovada, julgada e condenada. Mas ninguém está preso. Tudo bem, enquanto a Lei continuar paralítica, teremos de assistir a esta "féerie", esta apoteose de ladrões, velhacos, ratoneiros, chupistas e assassinos em geral. Mas é uma pena que tudo isso aconteça sem um toque de "savoir faire", sem "glamour", sem "wit"; só nos exibem desculpas vagabundas, sem respeito por nossa inteligência. E o pior é que, além dos bons e velhos ladrões políticos de sempre, há uma profusão de novos corruptos. Agora temos o espetáculo dos pelegos em ascensão, com bigodeiras tétricas, boçais, famintos, querendo comer os bens dos burgueses que antes condenavam. Acho que nossa endêmica corrupção está precisando de um banho de loja, de aulas de etiqueta, de "finesse".
Ah... que saudades dos bons e velhos corruptos d’antanho... Foram semeados na Colônia, amanhados no Império, desabrochados na República. Eram tradição cultural. Eles tinham um traço fundamental: a pose. O importante não era ser honesto; era parecer honesto. A coisa mais grave que aconteceu no Brasil foi a desmoralização da política. O fim da pose. Nem falo do desrespeito pela verdade, pois a verdade ninguém sabe o que é, mas a desmoralização da mentira. Essa raça não tem respeito nem pela mentira.
Eles não têm a mínima noção da "poética da corrupção", não têm postura, não têm oratória, não se cuidam, vestem-se mal, nos chocam com suas carantonhas. Falta a esses neo-corruptos a capacidade de ocultar suas perversões, se atiram aos roubos com uma fome desabusada, sem dissimulações. São cheques falsos, assinaturas mal forjadas, desculpas esfarrapadas. Roubar é também uma arte. Só nos resta imaginar um manual de boas maneiras para nossos corruptos.
Aqui vão algumas regras:
Mintam melhor. Não digam: "Ah... não me lembro do empréstimo de US$ 30 milhões sem avalista que consegui - assinei sem ler..." Ou então: "Esta mulher loura de coxas douradas? Não me lembro se foi minha secretaria ou não..."
Mintam bem, de fronte erguida, dedo espetado, sobrancelha alta, semblante calmo na base do Lexotan, olhos úmidos para emocionar o espectador, talvez uma breve lágrima, mas as mãos sem tremores, e sorrisos humildes, porém dignos. Mintam, mas jamais tenham o mau gosto de usar as lembranças da família, como "filhos queridos" ou " minha amada esposa"; aliás, ocultem-na, para não ficar visível sua pálida solidão sem amor. Ocultem também os filhinhos com traços psicopatas ou paranóicos. Tentem imitar os gestos seculares da rapinagem clássica: vocação de estátua, perfil de medalha, sorrisos conciliatórios, autoritarismo egoísta disfarçado de tolerância democrática.
Melhorem a língua que usam em telefonemas sempre gravados. Não é mais possível essa enxurrada de palavrões e erros de português. Parem de dizer ao telefone: "E aí... E aí, galego? Já mandou a grana pr’aquele filho da *? Tu tem qui botar o tutu aqui na minha mão! Tu tá cum tutu?" Parem com esse baixo linguajar. Esse tom escrachado tisna a dignidade do roubo porque o deboche desqualifica a beleza do delito. E quando comprarem bens com o dinheiro roubado da Saúde ou da Educação , não comprem apenas os óbvios objetos do desejo cafajeste: lanchas, carrões, vinhos, Miami, ilhas e amantes cachorras.
Comprem coisas belas, Renoirs, livros raros, vasos chineses de porcelana "craquelée", sei lá...
No afã de encobrir significados, usem termos mais sutis, em vez de "bufunfa" ou "tu já entregou pro Mané?" ou "esse cara é do * ... Quero 20%; 10% é pra garçon!..." Vocês devem usar códigos mais cultos: "Já recebeu o ovo de Fabergé?" ou "O Proust já te entregou os originais?...."; ou ainda: "Custou quanto comprar aquele Volpi?"
Outra coisa importante são as desculpas, os argumentos de defesa. Numa CPI, depoimento para a PF ou entrevista para jornais nunca diga lugares-comuns como "São infâmias contra mim... ilibado... despautério... aleivosias da oposição..." Outro dia, o Jáder Barbalho deu um belo exemplo. Acusado de supostos delitos, ele declarou: "Isto é um processo kafkiano contra mim..." Não é bonito? Boa literatura.
Os álibis têm de ser bem tramados. Não digam que "os R$ 2 milhões eram para comprar uma bezerra premiada", ou que "eu carregava US$ 100 mil na cueca para comprar mantimentos" (o cara disse).
Inventem desculpas emocionantes: "No leito de morte de minha mãe, veio a PF me procurar..." ou "estava eu rezando, com outros bispos de minha Igreja, quando caíram por milagre a meu lado duas malas com 6 milhões..."
No capítulo importantíssimo do "lay-out" da corrupção, não usem gravatas muitos berrantes que apontam para barrigas imensas... Emagreçam, pois o visual gorducho evoca pança cheia, comilanças... Fiquem magros.
Muito cuidado também com o dramático, o súbito momento da prisão, quando a polícia chega. A maioria dos corruptos presos em casa está sempre de bermudas e chinelo... Evitem esse traje vergonhoso. Quando algemados, saiam com uma bela "allure"; não escondam a cabeça na camisa, que parece confissão de culpa. Ostentem um sorriso superior, irônico, como que dizendo: "Sei que serei solto, não adianta prender..."
Cuidado com os bigodes - eles significam muito. Há os incriminadores, os cínicos, os suspeitosos. Penteiem-se melhor, evitem beicinhos vorazes e úmidos, não paguem amantes com dinheiro de propina, não gargalhem com a cara gorda imensa, com a boca escancarada, salivando de gozo, como um hipopótamo ladrão. E, por fim, quando matarem freiras ou índios, não façam o "V" da vitória quando absolvidos; apenas, um rosto gélido de quem é o rei da floresta, que compra jurados e "laranjas" para irem em cana em seu lugar.
Arnaldo Jabor
O Globo - Segundo Caderno, 20/05/2008
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