sábado, 10 de maio de 2008

Um inédito de Herman Melville sobre o Rio de Janeiro


Em abril de 1841, a bordo do baleeiro Acushnet, o escritor americano Herman Melville esteve pela primeira vez no Rio de Janeiro, fazendo escala antes de contornar o Cabo Horn. Três anos depois, em agosto de 1844, a bordo do navio de guerra United States, Melville passou uma semana na então capital do Império. Em seu romance "White-Jacket", publicado um ano antes de "Moby Dick" e ainda inédito em português, vários capítulos são inteiramente dedicados à descrição de episódios cariocas, inclusive com a participação do jovem imperador Pedro II.

O Prosa & Verso (do "O Globo") deste sábado traz um texto de Daniel Galera sobre a nova edição de "Moby Dick" (Cosac Naify, tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza), e o blog publica abaixo, em primeira mão, a tradução de Alexandre Barbosa de Souza para um capítulo de "White-Jacket", no qual Melville fala sobre o Rio.


CAPÍTULO 50

A Baía de Todas as Belezas

Eu disse que passaria pelo Rio sem uma descrição; mas agora mesmo um tal dilúvio de reminiscências perfumadas me arrebata, que sinto necessidade de recuar e desistir, ao inalar esse ar almiscarado.

Um circuito de mais de cento e cinqüenta milhas de encostas verdejantes abraçam um espaço translúcido, tão incrustado de serras de relva, que entre as tribos indígenas o lugar era conhecido como "A Água Oculta". Por todos os lados, a distância, erguem-se altos picos cônicos, que na aurora e ao crepúsculo queimam como um velame vasto e fino; e embaixo, vindos do interior, através de vinhedos e florestas, fluem córregos radiantes, todos esvaziando-se no porto.

Não falo da Bahia de Todos os Santos - Bay of All Saints; pois embora seja uma enseada gloriosa, o Rio é a Baía de todos os Rios – a Baía de todas as Delícias – a Baía de todas as Belezas. Das encostas de morros circunvizinhos, o verão incansável pende perpetuamente em terraços de vívido verdor; e salientes de um musgo antigo, convento e castelo aninham-se pelo vale e a ribanceira.

Por toda a volta, profundas reentrâncias avançam nos domínios da montanha verde, e, ressaltadas com selvagens Highlands, lembram mais Loch Katrines do que Lagos Lemans. E embora o Loch Katrine tenha sido cantado pelo encapuzado Scott, e o Lago Leman pelo coroado Byron; contudo, aqui, no Rio, ambos, laguna e lago são duas flores selvagens numa perspectiva quase ilimitada. Pois, contemplai! ao longe, muito longe, desenrola-se o amplo azul da água, rumo a morros longínquos e inchados de um verde claro, contrastados pelo púrpuro dos picos e tubos da grande Serra dos Órgãos; apropriadamente assim chamada, pois com trovoadas despejam canhoneios sobre a baía, afogando o baixo mesclado de todas as catedrais do Rio. Gritem com toda a força, exaltem as suas vozes, batam os pés, rejubilem-se, Montanhas da Serra dos Órgãos! e façam ouvir os seus Te Deums mundo afora!

E se, por mais de cinco mil e quinhentos anos, este grande porto do Rio tivesse ficado escondido nos morros, desconhecido do Católico Português? Séculos antes de Haydn tocar diante de reis e imperadores, estas Montanhas dos Órgãos tocavam seu Oratório da Criação diante do próprio Criador. Mas o nervoso Haydn não poderia suportar o coral de canhões, uma vez que este compositor de raios morreu por fim sob a destruidora comoção do bombardeio de Napoleão em Viena.

Mas todas as montanhas são Montanhas da Serra dos Órgãos: os Alpes e o Himalaia; a cadeia dos Apalaches, o Ural, os Andes, Green e White Hills. Todas elas tocam hinos eternamente: o Messias, e Sansão, e Israel no Egito, e Saul, e Judas Macabeu, e Salomão.

Rio Arquipélago! antes de Noé no velho Ararat ancorar sua arca, ancoraram em ti todas essas ilhas verdes e rochosas que vejo agora. Mas Deus não construiu em vós, ilhas! aquelas longas linhas de baterias; nem nosso abençoado Salvador foi padrinho no batismo de vossas fortalezas carrancudas de Santa Cruz, ainda que nomeadas em honra dele mesmo, o divino Príncipe da Paz!

Rio Anfiteatral! em seu amplo espaço pode se dar a Ressurreição e o Dia do Juízo de todos os navios de guerra do mundo, representado pelas naus-capitânias embandeiradas das frotas – capitânias das galés armadas dos Fenícios de Tiro e Sidon; das esquadras anuais do Rei Salomão que navegaram para Ofir; de onde, tempos depois talvez, navegaram as frotas de Acapulco dos Espanhóis, com lingotes de ouro por lastro; as capitânias de todas as embarcações dos Gregos e Persas que trocaram o abraço bélico em Salamina; de todas as galés Romanas e Egípcias que, feito águias, com proas sangrentas, bicaram-se em Áctio; de todas as quilhas Danesas dos Vikings; de todas as lanchas-mosquito de Abba Thule, rei dos Pelaws, quando ele foi conquistar Artinsall; de todas as frotas Venezianas, Genovesas e Papais que vieram ao confronto de Lepanto; de ambos os cornos do crescente da Armada Espanhola; da esquadra Portuguesa que, sob o galante Gama, castigou os Mouros e descobriu as Molucas; de todas frotas Holandesas de Van Tromp, naufragadas pelo Almirante Hawke; dos navios de quarenta e sete pés Franceses e Espanhóis que, por três meses, tentaram destruir Gibraltar; de todos os navios de setenta e quatro pés de Nelson que bombardearam São Vicente, o Nilo, Copenhague e Trafalgar; de todos os comerciantes das fragatas da Companhia das Índias Orientais; dos brigues de guerra, corvetas e escunas de Perry que dispersaram os arsenais Britânicos do Lago Erie; de todos os corsários da Barbaria capturados por Bainbridge; das canoas de guerra dos reis Polinésios, Tammahammaha e Pomare – sim!, todos eles e cada um, com o Comodoro Noé por seu Senhor Almirante – nesta abundante Baía do Rio, estas naus-capitânias podem vir todas ancorar, e fazer a ronda em concerto quando começar o dilúvio.

O Rio é um pequeno Mediterrâneo; e o que foi inventado sobre a entrada daquele mar, no Rio se faz parcialmente verdade; pois aqui, na boca da baía, ergue-se um Pilar de Hércules, o Pão de Açúcar, uma montanha de mil pés de altura, um pouco inclinada, como a Torre de Pisa. Em sua base, encolhidas como mastifes, estão as baterias de José e Teodósia; enquanto do lado oposto, você é ameaçado por um forte erigido na rocha.

O canal – a única entrada da baía – parece ficar à distância de um arremesso; não se vê nada do mar protegido até quase à beira do estreito. Mas, então, que visão se descortina! Diversificada como o porto de Constantinopla, mas mil vezes maior. Quando o Neversink aqui adentrou, a ordem foi passada, “Para cima, gajeiros! Dobrar velas mestras e os joanetes!”.

Ouvindo isso, corri para o cordame, e logo estava em meu posto. Como subi por aquele mastro real num arroubo! Elevado no ar, dependurado por sobre aquela magnífica baía, um novo mundo aos meus olhos arrebatados, senti-me o primeiro de uma revoada de anjos, pela primeira vez iluminado sobre a terra, vindo de alguma estrela na Via Láctea.

"White-Jacket", de Herman Melville. Tradução Alexandre Barbosa de Souza


http://www.melville.org/

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