Vivemos um sarapatel de velhas idéias e novas besteiras
Há muitos anos, percebi que haviam modificado a caixa grande dos chicletes Adams. Essas caixinhas tinham uma janela de celofane, através da qual se viam os chicletinhos chacoalhando. Um dia, notei que a janela original tinha sido trocada por uma falsa abertura: um desenho na caixa com os chicletinhos delineados. Algum executivo zeloso tinha cortado despesas, eliminando a doce escotilha por onde se viam as balinhas frescas como a brisa. Uma bobagem, não? Mas senti que a "pós-modernidade" (uff...) estava começando. É isso: nas irrelevâncias do cotidiano se escondem indícios de nosso destino.
O Brasil está vivendo uma ridícula revolução de costumes, um sarapatel de velhas idéias e novas anomalias que mataram os velhos conceitos que nos explicavam. Já há um pós-poder, uma pós-corrupção, uma pós-direita, um pós-crime, uma pós-miséria, uma pós-língua se cristalizando. Que palavras podemos usar para descrever o que vemos? Sou colunista de jornal há 17 anos.
Falo na TV há 13. No rádio, todo dia há mais de cinco. E vejo que as palavras que sempre usei já não bastam. As idéias não correspondem mais aos fatos. Só nos restam os indícios.
Querem entender o ódio que os jovens dedicam ao país? Vejam as paredes do Rio e de São Paulo. Não existe uma nesga de muro que não exiba uma pichação. Vingam-se das cidades que os excluem. Não há slogans, ou protestos. Apenas hieróglifos para sujar a melhor pedra, o mármore mais antigo: qualquer beleza tem de ser destruída. As pichações são o manifesto do não-sentido de nossa juventude pobre. Que nome daremos a este imenso bucho informe que a miséria cria nas periferias? A razão da barbárie cria uma nova língua feita de grunhidos, em torno da morte e da droga. As palavras, a pronúncia, a gíria letal dos bandidos nos acenam com um futuro de guerras sem trégua.
Outra pergunta: que estará anunciando para nosso futuro esta incessante repetição de escândalos políticos jamais resolvidos?
O Lula, eufórico com seu ibope, estimula esta impunidade, pela perversão esperta que agora pratica de apoiar indiciados, de se abraçar com os mais tenebrosos corruptos. Isso também é uma linguagem no ar. A negativa de crimes mais evidentes, o "não sei", o "não fui eu" vão criando uma espécie de "jurisprudência da impunidade". Talvez a crosta de corrupção nacional fique tão grossa que nunca mais se volte a uma mínima moralidade.
Mesmo nas microbobagens, como no chiclete sem janela, vejo dicas de uma mutação. Fico alucinado com a febre de uma pseudolinguagem executiva, uma algaravia técnica e informática que enche nossos ouvidos: celulares em voz alta na rua, nos aeroportos, nos cinemas. Outro dia, dentro de um avião, vi um sujeito demitir no celular um empregado aos berros: "Rua! Vou te cozinhar com a maçã na boca!"
E as campainhas? De repente, um funk ao seu lado, um "Pour Elise", uma cornetinha trauteando. Por que não fazem um celular que aperte o saco do usuário? Ele daria um grito e gemeria baixinho: "Alô"! Odeio gadgets como blackberries que nos acorrentam nas informações, que nos fazem viver num alerta permanente, espantalhos elétricos conectados a tudo: rádio, videogame, filmes, bolsa, previsão do tempo, torpedinhos, um suspense eterno de que algo vai chegar e nos salvará, ou matará.
Que recado nos traz a evidente hipersexualização das moças no Brasil (lá fora não é assim, não). Todas se vestem de "cachorras", barriguinha de fora, ingênuas com rebolados intensos. Há algo de sinistro em tanta nudez. Riam de mim, mas não agüento mais bundas. Nos outdoors, revistas, TVs. Por que bunda vende tanto?
Fico doido quando uma telefonista me pergunta: "Quem deseja?" Tenho ganas de gritar: "O ser humano deseja!" Mas ela continua: "Senhooorrr, o Dr. Fulano não se encontra...". Como? Está maluco, caiu em desgraça, se perdeu na floresta?
E o "imagina", que o Joaquim Ferreira dos Santos dissecou outro dia: "Obrigado...". "Imagina!" Que significa? Que não posso ser grato? Por que não "de nada" ou o velho e doce "Não tem de quê..." E por aí, vou me irritando com esses maus agouros.
Quando peço um guaraná, lembrando-me das belas frutinhas amazônicas, ouço invariavelmente: "Com gelo e laranja?" Por quê? O meu guaraná indígena não basta mais? Quem inventou essa besteira? Tenho ainda a esperança de encontrar um velho garçom que me pisque o olho e pergunte: "Da Brahma ou da Antartica?"
Repugnam-me células fotoelétricas em bicas de banheiros chiques. Você mete a mão ensaboada debaixo de uma bica dourada, e a água não sai. Tenta de novo, nada... Até que o faxineiro te ensina a posição certa, esperando a gorjeta. A água jorra e pára, antes de lavar o sabão líquido cor de mijo.
Tenho nojo de papel higiênico de folha fina, que se esgarça entre as unhas, abomino e-mails em cascata com as piadinhas da hora, tenho asco de frasezinhas que me tiram do sério, com gente dizendo-me: "Bom descanso" ou "Bom trabalho" - tristes cumprimentos de escravos do Capital.
Odeio anúncio de avião, que repete a mesma bosta há anos. E o telemarketing, com pobres moças trêmulas te enchendo com ofertas? Eu tenho pena de sua solidão e deixo que me torrem o saco.
Estamos mudando nesses indícios. Estamos afogados pelo ferro-velho mental do país, pelas oligarquias felizes e impunes, por um Judiciário caquético, pelas caras deformadas de políticos, pelas barrigas, gravatas escrotas, pela gomalina dos cabelos, pelas notas frias, pela boçalidade dos discursos, pelos superfaturamentos, estamos soterrados de detritos de vergonhas, togas de desembargadores, bicheiros soltos, balas perdidas, crianças assassinadas, celebridades imbecis, depressões burguesas, doenças tropicais, dengue, barriga d"água, barbeiros e chagas, enchente que não drenou, irresponsabilidades fiscais, assassinos protegidos no Congresso, furtos em prefeituras, municípios apodrecidos.
Cientistas políticos não bastam. Precisamos de detetives da mediocridade brasileira.
Arnaldo Jabor - O Globo
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