A descoberta de que a dieta dos pais afeta o DNA dos filhos resgata, após 200 anos, a obra do maltratado Lamarck.
No vigésimo primeiro dia do auspiciosamente denominado mês de Floreal (floração) , na primavera do ano 8 no calendário revolucionário francês (1800 para o resto do mundo) ”, escreveu o biólogo evolutivo americano Stephen Jay Gould, “o antigo cavalheiro, mas então cidadão Lamarck, proferiu a aula inaugural do curso de zoologia no Museu de História Natural de Paris – e mudou para sempre a ciência da biologia, ao apresentar o primeiro relato público de sua teoria da evolução.” Achar uma explicação para a diversidade dos seres vivos foi o motor intelectual do naturalista francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), o Chevalier de la Marck. Lamarck foi o primeiro evolucionista. Em 1802, cunhou o termo biologia para definir o conjunto das ciências da vida. Em 1809, 50 anos antes de Darwin publicar A origem das espécies (1859), Lamarck intuiu em Filosofia zoológica que o principal suspeito por trás da complexidade dos seres vivos era a interação com o meio ambiente, por meio “de forças (externas) que tentam incessantemente complicar sua organização”. Em 1815, Lamarck postulou a existência de um ancestral de todos os animais, do qual descenderiam “diretamente e quase sem nenhum intervalo”. Em 1820, concluiu que a complexidade da vida deveria ser entendida na forma de ramos que se espraiam daquela raiz comum – o primeiro rascunho da “árvore da vida” feito por Darwin é de 1837.
Lamarck não conhecia o processo responsável pela evolução das espécies – a descoberta da seleção natural é mérito de Darwin –, mas seu valor científico é indiscutível. Ou deveria sê-lo. O principal adversário intelectual de Lamarck era Georges Cuvier, o naturalista mais influente da França. Cuvier repudiava a ideia da transformação dos seres vivos. Usou seu poder para destruir Lamarck. “Uma vez admitidos esses princípios (evolutivos) , percebe-se que não bastaria nada além do tempo e das circunstâncias para fazer um pólipo se tornar um sapo, uma cegonha ou um elefante... Um sistema estabelecido em tais fundações diverte a imaginação do poeta”, afirmou Cuvier.
Cuvier obteve sucesso em enterrar a premonitória, e essencialmente correta, teoria evolutiva de Lamarck. A imagem do naturalista que ficou para a posteridade está ligada a sua outra teoria, a errada. Em Filosofia zoológica, Lamarck diz existir outro meio, além da ação das forças externas, para explicar a mudança das espécies. As características adquiridas por uma geração poderiam ser herdadas pela seguinte. O exemplo usado foram as girafas. Seu pescoço seria comprido porque os animais se esticam para alcançar e comer as folhas das árvores. Girafas com o pescoço encompridado em vida teriam filhotes com pescoço maior. Isso não ocorre. Lamarck foi ridicularizado. O lamarckismo virou sinônimo de teoria com conclusões absurdas. Seu autor morreu cego e miserável. De lá para cá, sua obra permanece no limbo. “Em uma das maiores injustiças da história, a desaprovação de Lamarck persiste até nossos dias”, disse Jay Gould.
Em 2009, comemoraram-se os 200 anos de Darwin e os 150 anos da publicação de A origem das espécies. Só um punhado de acadêmicos celebrou o bicentenário da publicação da Filosofia zoológica. Chegou a hora da revanche. E o destino jocoso cuidou para que a reabilitação de Lamarck não se operasse pela recuperação de seu arbusto da vida, mas graças às girafas.
Em 1999, a geneticista Emma Whitelaw, do Instituto de Pesquisa Médica de Queensland, na Austrália, alimentou uma rata prenha com uma dieta rica em vitamina B12, ácido fólico e soja. Os filhotes cresceram magros, saudáveis e marrons – apesar de terem um gene para torná-los obesos, com pelagem amarelada e risco de ter diabetes e câncer. A ingestão de vitaminas “desligou” o gene da obesidade. Foi a primeira evidência de que a alimentação da mãe altera o DNA de seus óvulos e os genes herdados pelas crias. “Isto é Lamarck. É a herança de um traço adquirido pelos pais”, diz Whitelaw.
Sabe-se hoje que o lamarckismo também age sobre oHomo sapiens. Em 2005, geneticistas do University College de Londres descobriram que os netos de homens numa cidadezinha sueca que tiveram alimentação farta na infância tinham mais chance de ser diabéticos e viver menos do que os netos dos homens que passaram fome na infância. Em 2006, o mesmo grupo mostrou que pais que começaram a fumar ainda meninos tendem a ter filhos mais obesos do que os filhos de homens que não fumavam na pré-adolescência. Conclui-se que a alimentação e o fumo alteraram o DNA dos espermatozoides, que só começam a ser produzidos na adolescência.
Em 2009, as geneticistas israelenses Eva Jablonka e Gal Raz, da Universidade de Tel Aviv, listaram 100 casos comprovados de traços adquiridos e transmitidos entre gerações de organismos. É o nascimento de uma nova ciência, a epigenética, o estudo das mudanças na atividade dos genes que não envolvem alterações no DNA, mas podem ser passadas às gerações seguintes. “A herança epigenética é onipresente. Os 100 casos são a ponta do iceberg”, diz Jablonka.
Em Evolução em quatro dimensões – DNA, comportamento e a história da vida (Companhia das Letras, 520 páginas, R$ 59), lançado nesta semana no Brasil, Jablonka e Marion Lamb resgatam as “heresias” do maltratado Lamarck para defender a reforma da teoria evolutiva. A epigenética é uma faceta dessa nova visão, mais abrangente que a defendida pelo inglês Richard Dawkins em O gene egoísta (1976). Para Dawkins, a evolução são os genes. Tudo gira em torno deles. Somos meros veículos de sua transmissão. Jablonka e Lamb defendem uma visão que alie genética com epigenética, abrace as influências da cultura e dos genes sobre a evolução humana, incorpore a ação dos vírus (eles pulam entre as espécies, infectando seu DNA) e que associe, de uma vez por todas, Lamarck a Darwin.
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