domingo, 4 de novembro de 2007

A irresistível atração da insensatez

Se o leitor pensa que um país próspero, bem aquinhoado pela natureza, com problemas sociais bem encaminhados e de povo educado está livre de crises de irracionalidade, atente para o caso da Espanha. A Espanha é um dos melhores países para se estar, no momento. É bonito, rico em monumentos históricos de variadas épocas e culturas, rivaliza nas artes com o que há de melhor no mundo, as cidades são animadas, o clima é agradável, o povo é simpático, a comida é boa, o vinho idem e o pão, esse primordial indicador do bom trato dispensado por um povo a si próprio, é de primeira qualidade. A isso se somam as conquistas, recentes, de uma democracia impecável e de uma prosperidade que, in loco, salta à vista, e à distância, da perspectiva destes Brasis, se mede pelo avanço dos investimentos da pátria que outrora foi de Dom Quixote e que hoje é do Banco Santander, da editora Santillana, da Telefónica e da administradora de rodovias OHL.

Não era para estar satisfeito? Normalmente era, mas o que é "normalmente", na vida de uma nação (ou na vida em geral)? A velha questão do separatismo ferve. A Constituição de 1978, que enterrou a ditadura franquista, garante às regiões alto grau de independência. "Comunidades autônomas" é como elas são chamadas, e o nome faz jus à coisa. O estatuto compensa com largueza o sufoco do período franquista, em que o poder central caía sem dó até sobre o direito de a Catalunha, o País Basco e a Galícia se expressarem em seus idiomas. Passados trinta anos de liberdade, governos autônomos e uso e abuso das línguas locais, era para todo mundo estar satisfeito. Em setembro, no entanto, o lehendakari (presidente) do País Basco, em desafio a Madri, marcou um plebiscito sobre a independência para o ano que vem. Na cidade de Girona, na Catalunha, o rei Juan Carlos foi recebido com apupos e desordens, episódio a que se seguiu, nas semanas seguintes, a queima de retratos do rei em várias localidades catalãs.

O separatismo do País Basco, por ter no terrorismo uma de suas expressões, é o mais conhecido mundo afora. O da Catalunha é para um estrangeiro mais surpreendente, por sua extensão, e mais incompreensível, por se manifestar na região mais rica e historicamente mais cosmopolita da Espanha. Merece um brinde com a melhor cava (o espumante catalão) quem descobrir em Barcelona mais de uma bandeira espanhola para cada cinqüenta da Catalunha, e merece outro quem achar mais de uma referência, nos monumentos ou nomes de ruas, a fatos da história da Espanha, contra outros cinqüenta referentes à história regional – perdão: "nacional" é a palavra correta – da Catalunha. O jornalista brasileiro Ricardo A. Setti, que visita Barcelona com freqüência, contou num artigo que placas de automóvel têm o "E" de Espanha substituído por seus proprietários por um "CAT" de Catalunha, "sob a cumplicidade da polícia local".

É no culto à língua que mais se manifesta o nacionalismo local. O povo é bilíngüe, e nenhum catalão deixará de falar espanhol com um estrangeiro, mas a Cataluña oficial cada vez mais deixa de sê-lo. Nomes de ruas e de estações de metrô só se vêem em catalão. Menos mau, para o estrangeiro de língua latina, que dá para entender. É até pitoresco saber que se está circulando pela "Avinguda Diagonal" e ler num bar o aviso de que não se vendem "begudes alcohòliques a menors de 18 anys". Mas há na insistência pela exclusividade da língua um traço que, fácil, fácil, descamba para a intolerância. A Generalitat (governo local) expediu, semanas atrás, instrução aos professores para que vigiem se, no recreio, as crianças continuam falando catalão. Uma escritora uruguaia radicada em Barcelona, Cristina Peri Rossi, foi excluída do programa de que participava na Rádio da Catalunha por se expressar em castelhano.

As relações entre o governo espanhol e a Catalunha são como entre um pai que se arma de paciência para não brigar e um filho que não se cansa de provocar. A chantagem está implícita no discurso do filho: "Olha que eu me separo, hein?". O catalanismo não se contenta em se afirmar dentro da Espanha; só tem graça fazê-lo contra a Espanha. E aqui chegamos ao centro da questão. País Basco e Catalunha, como partes da Espanha, integram um dos maiores países da Europa, dos mais prósperos do mundo e que tem como língua franca uma das mais faladas do planeta. Caso o País Basco se separe, encolherá às proporções de pouco mais que um Luxemburgo. A Catalunha virará quando muito uma Bélgica. É isso que querem? A pura racionalidade não o aconselharia. Mas, como se sabe, não é a racionalidade que move as nações (nem as vidas).

Roberto Pompeu de Toledo
VEJA, Edição 2033 - Nov. 2007

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