sábado, 3 de novembro de 2007

Ômega

Dizem por aí que uma idéia consegue cativar as pessoas porque ela faz sentido, mas isso me parece uma simplificação grosseira (ou uma racionalização ruim, ou as duas coisas) do que realmente acontece na nossa cabeça. As idéias verdadeiramente poderosas nos conquistam pela sua capacidade de nos agarrar pelo colarinho. Elas descortinam uma visão de beleza diante dos nossos olhos e, num estalo, mesmo que não queira, a nossa mente se rende. “É claro! Mas é claro que é assim que as coisas funcionam no mundo”, dizemos. Das idéias que são capazes dessa proeza, duas das mais fortes são a fé cristã e a teoria da evolução. Para muita gente, elas estão em guerra perpétua, e nenhuma pode triunfar enquanto a outra existir. Mas não para John F. Haught. E ele quer mais do que um armistício – quer nada menos que uma unificação.

Haught, um teólogo católico da Universidade Georgetown, nos Estados Unidos, diz que o cristianismo adotou, no último século e meio, a postura errada em relação às descobertas de Darwin e das gerações de biólogos evolucionistas que se seguiram a ele. Aliás, as posturas, no plural.

As reações da religião ao darwinismo podem ser, grosso modo, divididas em duas categorias, segundo ele. Uma é a de recusa violenta – para os fundamentalistas, a narrativa bíblica da criação é verdade literal, e qualquer tentativa de subvertê-la é uma ameaça à própria fé. A outra é criar uma espécie de cordão sanitário entre os domínios da religião e da ciência – não há contradição entre uma coisa e outra, e nem pode haver, porque cada uma lida com aspectos separados da realidade, o mundo natural e o mundo sobrenatural.

Para Haught, a separação amistosa entre fé e ciência pode funcionar como estratégia política. Mas, no longo prazo, pode começar a soar como covardia. Afinal, o discurso de quem usa o darwinismo como “prova” da inexistência de Deus, ou pelo menos da falta de preocupação dele com o mundo vivo, aponta fatos que poderiam ser considerados, de forma legítima, como um desafio à idéia de um Deus que ama sua criação e se preocupa com ela.

De forma muito resumida, os darwinistas antirreligiosos, como o zoólogo britânico Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, apontam que a teoria da evolução revelou milhões de anos ininterruptos de sofrimento aparentemente sem sentido no mundo vivo. Em vez de um mundo criado por Deus, no qual tudo funciona de forma harmônica e benevolente, a vida no mundo darwinista está assombrada pelo desperdício, pela deformidade, por um sistema aleatório de tentativa e erro. Nenhum Deus digno desse nome – e certamente não o Deus de Jesus Cristo – criaria uma espécie de vespa cujas larvas devoram lagartas vivas por dentro conforme crescem, tomando cuidado para não afetar órgãos vitais. Nenhum Deus permitiria que o Holocausto acontecesse.

Haught reconhece que esses darwinistas radicais têm aí um argumento forte. Mas sua estratégia de contra-ataque é abraçar de vez o inimigo. Para ele, uma teologia cristã realmente profunda e “adulta” precisa se transformar, incorporando o que Darwin trouxe de valioso.

Um Deus humilde

A chave para a releitura teológica de Haught está numa das passagens mais belas do Novo Testamento, um hino a Jesus na Carta de São Paulo aos Filipenses. Nela, o mistério de Cristo deixando de lado sua condição divina para virar homem é assim descrito: “Esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens”. Em grego, “esvaziamento” é kenosis, e é na kenosis de Cristo que o teólogo vê a chave para o mistério de Deus num cosmos como o nosso, onde a evolução da vida acontece.

A fé cristã mostra, para Haught, que Deus não desejava um Universo que fosse seu escravo, uma marionete que ele tivesse de conduzir o tempo todo. O amor de Deus por sua criação exigiria, segundo o teólogo, que Ele se esvaziasse de seu poder divino, tal como Cristo o faria na cruz, e deixasse o Universo florescer de forma livre, mesmo que a dor fosse uma parte inseparável dessa liberdade e desse florescimento.

É usando esse raciocínio que o teólogo americano retoma um outro pensador que buscou unir fé e evolução: o jesuíta e paleotólogo francês Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Chardin costumava dizer que, após Darwin, Deus precisava deixar de ser visto apenas como Alfa (o começo de tudo) e mais como Ômega (a força para a qual o Universo estava caminhando).

Para Haught, ver Deus como o Ômega para o qual a criação está sendo atraída por meio da evolução da vida é quase uma conseqüência lógica da fé judaico-cristã, na qual Deus é sempre a força da promessa do futuro – a promessa de que Abraão, apesar de já velho, teria filhos e seria o ancestral de um povo, a promessa de que Israel teria um Messias, a promessa de que um punhado de judeus radicais, pobres e perseguidos converteriam as nações do mundo em seguidores de Jesus.

Por definição, o futuro nunca está pronto. Segundo Haught, a visão de que o Universo e a vida estão em constante evolução é perfeitamente coerente com outra idéia de São Paulo: é a de que o cosmos atual está passando pelas “dores do parto” e “suspira” pela transformação trazida por Deus.

Até onde essas idéias são capazes de tocar quem está fechado na sua própria cabeça de fundamentalista religioso ou materialista radical é difícil dizer. De qualquer maneira, elas servem para mostrar que não é preciso renunciar nem aos fatos nem a fé para que as fundações do mundo voltem a fazer sentido.

As principais idéias de Haught a respeito do impacto teológico da teoria da evolução sobre o cristianismo podem ser encontradas em seu livro “Deus após Darwin – Uma Teologia Evolucionista”. A obra é densa, mas a leitura é recompensadora para todos os que se interessam pelo diálogo entre a ciência e a religião.

Reinaldo José Lopes - G1

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