quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O grande mestre

Hermógenes em sua academia, sob o símbolo do Om, palavra sagrada do hinduísmo. Aos 86 anos, ele dá aulas, medita e escreve

Na rua Uruguaiana, um dos formigueiros humanos no centro do Rio de Janeiro, a gritaria do mercado popular, somada ao barulho dos carros e ônibus, é capaz de estressar qualquer transeunte. Quem passa por ali dificilmente acreditaria que há 45 anos, na cobertura do prédio de número 118, existe um lugar onde impera o silêncio. Lá, o respirar é lento e profundo. Numa ampla sala de chão coberto por esteiras de vime, José Hermógenes de Andrade Filho, de 86 anos, presta atenção à postura de seus alunos.

Mais conhecido como professor Hermógenes, o precursor da ioga no Brasil repete incessantemente, como um mantra: “Respirem, respirem”. Cerca de dez homens e mulheres, todos na terceira idade como ele, obedecem e capricham nas posições simples, que relaxam, ativam a circulação e irrigam o cérebro. Todos estão ali há pelo menos dez anos. Dona Diamantina, viúva, de 81, freqüenta suas aulas há 30 anos. Curou a coluna. Seu Benjamin, de 80, livrou-se da depressão. No fim, 15 minutos de piadas de salão encerram a aula. “É hora da risoterapia”, diz o professor, que se esmera em imitar sotaque português e voz de papagaio.

A aula das tardes de sexta-feira é a única que o professor Hermógenes comanda hoje. O tempo dele divide-se entre algumas viagens de trabalho – palestras e visitas a projetos sociais pelo Brasil –, caminhadas pelo Aterro do Flamengo, onde mora, e muito descanso e leitura, em casa. “Acordo às 6, faço uma refeição leve, caminho meia hora, tomo banho, repouso um pouco. Depois do almoço, leio e faço pequenas atividades. No momento, termino o prefácio de um livro. Estão me pedindo muitos prefácios”, afirma Hermógenes, que já publicou 21 livros sobre ioga. O primeiro, Autoperfeição com Hatha Yoga, um marco no Brasil, chegará à 50a edição no ano que vem e vai ganhar uma reedição especial.

“Janto cedo e me deito cedo, depois de passar os olhos nos telejornais”, diz o professor. Nos fins de semana, almoça com toda a família. E quando medita? Quando faz ioga? “Estou fazendo neste momento”, afirma. Simples assim. O professor Hermógenes é uma figura desconcertante. Com apenas 1,60 metro e 57 quilos, dá um abraço de estalar a coluna, mesmo em quem acabou de conhecer. E não abre mão desse contato físico. “Minha religião é o amor”, afirma.

A história de amor entre a ioga e o professor Hermógenes – que completa 50 anos – é semelhante à de muitas pessoas: um encontro patrocinado pela dor ou pela doença. A grande diferença é que, em 1957, ninguém conhecia essa filosofia. Capitão do Exército, de 35 anos, casado, duas filhas, Hermógenes descobriu-se tuberculoso. Nascido em Natal, a essa altura já morava no Rio. Foi obrigado a afastar-se da vida militar, tornou-se ocioso, engordou. Passou a ter uma vida “pobre em esperança e vigor”, como ele mesmo define.

Num raro passeio ao centro da capital carioca, entrou na livraria Leonardo da Vinci, na Avenida Rio Branco. Em uma das prateleiras, chamou-lhe a atenção um livro em inglês sobre o poder curativo da ioga. Era teórico, e serviu para acender sua curiosidade sobre o tema. Menos de um mês depois, queria mais. Voltou e encontrou outro, em francês, com exercícios. Praticava no chão do banheiro, gelado e impróprio para quem acabara de sair da tuberculose. Fazia os exercícios escondido da mulher – estava proibido pelos médicos de pegar sol, tomar banho de mar, andar descalço e manter qualquer atividade física. “Eu ficava ali todos os dias por uma hora, praticando. Foi assim quase um ano, e então minha vida mudou. Emagreci, esculpi o corpo, acabaram-se as gripes e a insônia”, afirma.

O primeiro livro do mestre nasceu quase três anos depois. Estudou o que pôde em publicações estrangeiras, consultou médicos e psiquiatras. O manual de ioga em língua portuguesa causou impacto há meio século. Foi chamado a dar palestras e entrevistas. Passou a receber cartas de pessoas que insistiam para que ele desse aulas. Como precisava de uma renda para sustentar a família, em 1962 abriu sua academia, que funciona até hoje sem alarde ou propaganda. Acredita que já passaram por ali mais de 2 mil alunos. Muitos se tornaram professores e ajudaram a espalhar a filosofia pelo Brasil. “O professor sempre difundiu os princípios filosóficos mais nobres da ioga e o faz até hoje, quando há tantas escolas que a reduzem a um mero exercício físico ou atividade comercial”, diz Marco Taccolini, um dos organizadores do recém-lançado Livro de Ouro do Yoga, da Ediouro – cujo prefácio é de Hermógenes.

A atual banalização da ioga é assunto que, se não chega a irritar o professor, altera ligeiramente o tom de sua voz, sempre suave. “A culpa é da Madonna”, afirma. Ele acredita que desde que a milenar filosofia, nascida na Índia, caiu no gosto dos modernos, houve uma difusão superficial do que ela realmente é. “Dão ênfase ao que a ioga faz com o corpo, esquecendo-se do autoconhecimento e da integração do ser humano com o universo. É o que diz o nome ioga: união. E ainda paz, verdade, s retidão, amor e não-violência”, afirma. São coisas da Kali Yuga, diz o professor. Kali representa o escuro, a treva, e Yuga a era, o período. Portanto, para ele, vivemos tempos de uma sociedade desestruturada, de violência e intolerância. De muita informação e pouca educação.

Esse caminho de uma ioga mais espiritual está refletido em sua obra literária. Em defesa de uma era mais iluminada, o mestre iogue ainda percorre o país – longe de holofotes – divulgando sua filosofia. Vai a escolas de menores infratores, a hospitais e penitenciárias. Recebe cartas de pessoas que garantem ter sido transformadas por seus livros. Nesses lugares, tenta afastar as pessoas do que ele chama de “normose” – definição que ele dá à situação de quem vive de forma padronizada, ajustado por uma sociedade desequilibrada. “O normótico vive uma vida mundana, sem comprometer-se com seu interior, que é superior a tudo. É aí que surgem as doenças do corpo e da alma”, afirma. Hoje, o professor não faz mais as posições difíceis que sempre surpreendeu alunos e platéias. Sente saudade da Sirshasana, postura inversa sobre a cabeça, sua preferida.

Como seu sucessor, ele apresenta João Thiago Leão, de 28 anos, um dos seis netos homens. Há ainda três bisnetos. Foi praticamente o único da família a levar a ioga a sério. É ele quem hoje toca a academia. “Uma de minhas filhas pratica ioga agora, depois de velha. A outra encantou-se com o catolicismo”, diz. Não há qualquer crítica no comentário. O ecumenismo é parte da vida de Hermógenes. Em sua sala, convivem imagens de São Francisco de Assis, Jesus Cristo e Nossa Senhora, estátuas de Buda, um desenho de Madre Teresa de Calcutá, cristais, anjos e fotografias do guru indiano Sai Baba, a quem o professor visita quase todos os anos, na Índia. Na sala, há ainda sinos de vento, miniaturas dos profetas de pedra, retratos dos netos, um cabideiro com uma coleção de bonés e uma imensa estante de livros de ioga, filosofia, psicologia, medicina.

“A vida de Hermógenes é um apostolado, e ele é um arquipélago de conhecimentos”, diz Divaldo Franco, o médium brasileiro mais famoso no mundo. O depoimento está no documentário Deus Me Livre de Ser Normal, do fotógrafo Marcelo Buainain, sobre a vida do professor. O filme traz falas de alunos e amigos como Chico Xavier, Elba Ramalho e o escritor Pierre Weil. Amigo de longa data, o teólogo Leonardo Boff diz que Hermógenes é “um dos anjos bons do Brasil”. Os dois se conheceram em 1971, período em que Boff lançava Jesus Cristo Libertador, fundando a Teologia da Libertação. De lá para cá, estiveram juntos em palestras pelo país. “Jamais pratiquei ioga, mas temos em comum a busca de um Deus interior”, diz o teólogo.

Caçula dos 20 filhos de um funcionário público e uma costureira, Hermógenes não é um homem rico. Vive com algum conforto, mas com simplicidade. Casou-se duas vezes. A primeira com Yone, mãe de seus filhos, já morta. A segunda, Maria, morreu em 2002. Com a última fez suas primeiras viagens à Índia. Perdeu as contas de quantas vezes foi até lá. Mora sozinho, sob os cuidados da empregada, Sebastiana. A cinema ou teatro, não vai há tempos. Orgulha-se de já ter escrito quatro livros no computador. Tem se dedicado à poesia. É vegetariano e raramente come doces. Jamais aprendeu a dirigir. Diz que anda sozinho, sempre de táxi. “É uma medida de não-violência”, afirma, para depois confessar a verdade. “Uma vez tentei, mas cometi barbaridades.” O professor é irônico. Cultua o riso. Diz que já deixou palestras formais para contar piadas ao público.

“O que mais acho bonito no meu avô é que ele vive o que sempre pregou. Faz o que sempre ensinou: a prática do bem”, diz o neto e discípulo João Thiago, referindo-se à adoração que as pessoas têm pelo avô. Hermógenes acha que é pouco. Afirma que provavelmente vai morrer sem alcançar sua meta. “Sou egoísta e ainda tenho orgulho de convencer as pessoas. Sinto prazer no aplauso. Não deveria mais sentir isso”, afirma. A idade avança e Hermógenes diz não sentir medo da morte: “Dão ênfase ao que a ioga faz com o corpo, esquecendo-se do autoconhecimento. Um dia a idade vem, trazendo o envelhecimento deste corpo, o sofrimento. Quando a vida se torna desagradável, a morte é como a sineta da escola. Vai começar o recreio!”.

Martha Mendonça
Época, Ed. 496 - 19/11/2007

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