A trajetória extraordinária, o legado artístico, a vida controvertida e a morte surpreendente e enigmática do rei do pop
A morte do cantor, compositor e dançarino Michael Jackson, aos 50 anos, causou uma comoção mundial só reservada antes a outros dois ídolos da música popular: Elvis Presley (1935-1977) e John Lennon (1940-1980). A reação dos fãs canoniza o “rei do pop” – que não constituiu um título oficial, mas o apelido que sua amiga, a atriz Elizabeth Taylor, lhe deu em 1989 na entrega de um entre as centenas de prêmios que ele recebeu em sua carreira. Não poderia haver apelido mais adequado. Assim como Presley ganhou o título de “rei do rock” e Lennon se consagrou como o poeta da rebeldia global dos anos 60, Michael Jackson foi o líder revolucionário da música pop, o fundador da era do videoclipe, o defensor de causas sociais e o maior vendedor de discos de todos os tempos. A exemplo de Elvis e Lennon, Michael experimentou a glória e a tragédia e deixou atrás de si um rastro de enigmas e azares. Foi vítima do sensacionalismo da imprensa de celebridades e enfrentou batalhas jurídicas polêmicas, como as acusações de assédio sexual a menores – das quais foi absolvido.
Carisma, mistério, decadência e morte são as marcas dos ícones da cultura pop. Michael Jackson reuniu todos esses elementos. Subiu mais alto que todos, foi o artista mais popular do planeta e amargou uma longa derrocada artística que durou 20 anos e o levou praticamente à falência financeira – um traço distintivo em relação a seus dois antecessores no reinado pop, que morreram milionários. Michael passou de anjo a monstro, mas a história deverá lhe dar o status de gênio, um artista conturbado e sincero cujas confissões nunca foram levadas a sério.
Por isso mesmo, quando os twitters e sites de fofocas anunciaram sua morte, furando os jornais, tudo aquilo pareceu mais um boato entre os muitos que envolveram Michael. Desta vez era verdade, e a notícia levou a um choque de proporções mundiais. A morte de Michael Jackson foi confirmada oficialmente na tarde da quinta-feira 25, no Centro Médico da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), aonde chegou em coma depois de uma parada cardíaca sofrida em uma mansão alugada no bairro de Bel Air. Imediatamente, multidões saíram espontaneamente às ruas no mundo inteiro para reverenciar o ídolo máximo do pop. De Mumbai a Nova York, de São Paulo a Londres, as pessoas se reuniram para fazer homenagens e cantar juntas os sucessos do ídolo. Enquanto a autópsia do corpo não era realizada, proliferaram as especulações. Ele estaria estafado com o ritmo de exercícios físicos para recuperar a forma, e isso teria provocado um infarto. Cogitou-se também suicídio por barbitúricos. O advogado Brian Oxman, da família Jackson, afirmou que Michael estava muito tenso ultimamente e que usava remédios com receita médica para aliviar a ansiedade, a dor e o esgotamento nervoso. Na sexta-feira, as primeiras investigações sobre a morte levantavam a hipótese de que ele tenha recebido uma injeção de Demerol (medicamento à base de morfina, contra a dor) ministrada pelo médico da casa, Conrad Robert Murray, no final da manhã, duas horas antes de morrer.
A tensão que Michael vivia nos últimos tempos foi motivada pela insegurança em relação a seu retorno aos palcos, com a turnê This is it, que estava marcada para estrear em 13 de julho na O2 Arena, em Londres. A temporada estava pré-consagrada, com 800 mil ingressos vendidos para 50 shows programados até março do ano que vem. O plano de Michael, conforme declarou na entrevista coletiva que concedeu na Inglaterra em janeiro, era percorrer outras cidades do mundo. Os sites de fofoca de Hollywood, como o TMZ, informam que o artista tinha uma dívida de US$ 320 milhões. A turnê o ajudaria a saldá-la, pois lhe renderia só na Inglaterra US$ 400 milhões. Ele tinha consciência de que sua carreira não poderia continuar depois.
“Esta será a minha cortina final”, disse, diante de 7 mil fãs. “Depois disso, nada mais. É isso e pronto (this is it).” E emendou, com as lágrimas transparecendo, apesar de seus óculos mais escuros que seu cabelo longo tingido de negro, encobrindo o rosto desfigurado por sucessivas cirurgias plásticas: “Eu amo vocês, de verdade!”. As multidões que lhe prestaram tributo no mundo inteiro nos últimos dias mostraram que o sentimento era recíproco.
Para conquistar centenas de milhões de admiradores, Michael Jackson esteve à frente de três acontecimentos fora do comum. Primeiro, simbolizou as mudanças sociais ocorridas nos Estados Unidos e no mundo nas últimas cinco décadas. Afirmou o lugar de destaque dos artistas negros, fez moda e alterou o comportamento da juventude. Em segundo lugar, no plano comercial, atuou como peça fundamental para a transformação da indústria da música e do entretenimento em um negócio gigantesco. Com seus passos inventados, os espetáculos superproduzidos, sua vocação para o videoclipe e para entender o que as pessoas queriam ouvir, ele instaurou a era dos superastros – no que foi seguido por Madonna, Prince e... os outros. Por fim, sua contribuição artística se revelou tão poderosa que hoje quase toda a música pop de sucesso é devedora de suas invenções (leia o quadro na última página).
A história de sua formação é repleta de lances de sorte, e também de tristeza. Sua infância foi marcada pelas agressões físicas sofridas dentro de casa. Ele nasceu Michael Joseph, em Gary, Indiana, em 29 de agosto de 1958, sétimo filho de uma família de nove irmãos. O pai, Joseph Walker Jackson, trabalhava como operador de guindaste na Island Steel Chicago. A mãe, Katherine, era dona de casa e cristã devotada. Depois de muitos batismos, converteu-se às Testemunhas de Jeová. Ela achava que Michael era um ser especial. Ainda bebê, dançava sacudindo a mamadeira. Com 5 anos, arrancou aplausos numa apresentação da escola, quando cantou “Climb ev’ry mountain”, do musical A noviça rebelde. Seus irmãos igualmente exibiam talento musical. Eles cantavam e dançavam na frente de casa, localizada em uma área pobre e reservada aos negros da cidade. Não demorou para que Joseph visse nas brincadeiras dos filhos um negócio a explorar. Em 1960, criou o primeiro conjunto – o trio The Jackson Brothers, formado por Jack, de 9 anos, Tito, 7, e Jermaine, 6. Depois viriam Marlon e Michael, que se juntou ao grupo quando completou 5 anos, em 1963. Surgia o Jackson 5. Depois, Michael Jackson lembraria das pancadas que costumava levar de seu pai, porque era o único dos irmãos que revidava as agressões. “Meu pai era horrível”, disse em entrevista a Oprah Winfrey, em 1993. “Eu chegava a vomitar quando o via. Não tive infância, eu era obrigado a trabalhar dia e noite. Foi um preço alto para o sucesso...”
A carreira profissional se iniciou quando o conjunto venceu o concurso de calouros do Apollo Theatre, no bairro negro do Harlem, em Nova York, em agosto de 1967 – episódio narrado no livro Michael Jackson, a magia e a loucura, de J. Randy Taraborrelli (Editora Globo). A gravadora Motown, dedicada ao rhythm-and-blues, tinha experiência com astros infanto-juvenis, pois vendia muito vinil com o astro infantil Stevie Wonder. Contratou os irmãos Jacksons em 1968. Eles logo atingiram o sucesso. Em 1970, o Jackson 5 bateu um recorde: pela primeira vez, um grupo chegava ao primeiro lugar das paradas de sucesso da revista Billboard com quatro músicas: “I want you back”, “ABC”, “The love you save” e “I’ll be there”. Muito do êxito estava ligado à voz aguda e afinada e ao desempenho de palco de Michael. A Motown lançou-o em carreira solo em 1971. Foi quando sua voz agudíssima e afinada se fez ouvir no mundo todo com as canções lentas “Got to be there” e “Ben”. Ele continuava no Jackson 5, que amargava o fracasso. Em 1975, o grupo trocou a Motown pela CBS.
O produtor da gravadora, o maestro e jazzista Quincy Jones, se encantou com o talento musical e gestual de Michael e se ofereceu para produzir seus álbuns a partir de então. A parceria rendeu a trilogia Off the wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987). Os três discos elevaram Michael Jackson à condição de superastro. Off the wall foi o LP mais vendido de rhythm-and-blues até então: 20 milhões de cópias. Com Thriller, a fórmula de superprodução de cada faixa fez com que Michael Jackson fosse o primeiro artista afro-americano a atingir a corrente principal do pop. As vendas do álbum até hoje não foram superadas: atingiram 104 milhões de exemplares em 25 anos, segundo a produção do músico (o livro Guinness de recordes informa 65 milhões).
Thriller foi uma fonte de inovações. Em 1983, durante a festa de 25 anos da Motown, Michael cantou com voz superaguda uma nova modalidade de balada, Billy Jean, uma mistura de rock, funk, soul e jazz, enquanto exibia pela primeira vez o “moonwalk” (“andando na lua”), a coreografia de passos escorregadios e imprevisíveis jamais vista. A plateia gritou e aplaudiu com entusiasmo. Outra contribuição do artista está na transformação do vídeo musical em peça de arte. Antes, o videoclipe era usado mais como peça promocional. A partir de Thriller, dirigido por John Landis (de Um lobisomem americano em Londres, de 1981), o videoclipe ganhou autonomia estética. De lá para cá, som e imagem se tornariam inseparáveis. Bad reafirmou a eficácia da fórmula criada por Quincy e Michael, que até hoje é usada: uma acoplagem de funk, soul, jazz, música latina e rock. A indústria da música vivia seu ápice, liderada pela CBS, depois comprada pela Sony (atual Sony BMG).
O canto de Michael alterou a música porque transformou o falsete, em geral usado em backing vocals, num campo de improvisações. As letras das canções continham mensagens fortes e críticas sobre a situação das comunidades pobres dos Estados Unidos, obrigadas a viver na miséria. Em dez discos solos, lançados de 1972 a 2001, Michael atingiu a impressionante marca de 750 milhões de cópias vendidas no mundo todo. Um recorde praticamente impossível de ser superado, até porque o disco deixou de ser o suporte exclusivo da música. O fim do CD correspondeu ao fim da carreira musical de Michael. Seu último CD, Invincible (2001) não emplacou um único sucesso.
Michael esteve à frente da mudança de atitude dos artistas afro-americanos. Antes dele, o negro só podia brilhar em um nicho de mercado, o rhythm-and-blues. Depois dele, o panorama do pop se alterou radicalmente: os gêneros negros triunfaram, já não como som de gueto, mas generalizado. Em 1985, Michael escreveu com Lionel Richie a música “We are the world” (“Nós somos o mundo”), para arrecadar fundos para combater a fome na África. O clipe com a música reuniu os principais astros daquele tempo e inaugurou a era da generosidade no pop. Em 1993, ansioso para conhecer a América Latina, Michael se apresentou no estádio do Morumbi, em São Paulo, na turnê Dangerous. Voltaria ao país em 1996, para gravar, na Favela Morro Dona Marta, no Rio, e no Pelourinho de Salvador, o clipe “They don’t care about us” (“Eles não ligam para nós”), com participação do Olodum e direção de Spike Lee. Para gravar no Rio, Michael teve de negociar com o chefe do tráfico local, Marcinho VP.
O artista foi também um visionário social: em 1991 ele anunciava o mundo pós-racial com a canção “Black or white” (“Preto ou branco”). Se naquele momento aquilo pareceu uma excentricidade para justificar as operações de branqueamento da pele a que se submetia (segundo ele, por causa de um vitiligo), hoje o clipe da música soa como o anúncio de um novo mundo, em que as raças se fundem e a humanidade se eleva para um plano universal.
À medida que sua música definhava, afloravam as frustrações infantis. Inseguro com a aparência e com a própria personalidade, desde 1988 Michael passou a se submeter a cirurgias plásticas e a dar vazão a manias, como colecionar objetos bizarros e comprar um rancho, que batizou de Neverland (Terra do Nunca) em homenagem a seu personagem favorito: o eternamente menino Peter Pan. Ali, convidava crianças para passar o dia (e alguns a noite) com ele, o que lhe rendeu diversos processos por pedofilia.
A vida privada problemática se misturou ao anseio de se aproximar de seus ídolos. Comprou, num leilão, os direitos autorais sobre metade das músicas da dupla Lennon & McCartney. Paul McCartney, que também participou do leilão, ficou furioso, e nunca mais falou com Michael. Com 36 anos, casou-se com Lisa Marie Presley, filha de Elvis Presley. O casamento durou dois anos e só fez crescer os rumores sobre seu comportamento estranho. Isso aumentaria em seguida. Para ter filhos, Michael ficou casado entre 1995 e 1999 com a enfermeira Debbie Rowe. Da união, nasceram dois filhos, Prince Michael I, hoje com 12 anos, e Paris Katherine, com 11. Michael fez acordo com Debbie para ficar com a guarda das crianças. Depois, gerou Prince Michael II, hoje com 7 anos, por inseminação artificial.
Ele buscou a justificativa íntima compondo “Childhood”, canção lançada em 2001. Segundo ele, a música continha a explicação para suas frustrações. Mas ninguém deu muita atenção ao recado. Dizem os versos: Você viu a minha infância?/Estou procurando pelo mundo de onde venho/Nos achados e perdidos do meu coração/Ninguém me entende/Eles a veem como excêntrica/Porque continuo brincando/Como uma criança, mas me perdoem”. E, mais adiante: Antes de você me julgar, se esforce por me amar.
Nesta última década, o público lhe virou as costas. Seu último disco, Invincible, não cumpriu a promessa do título: apesar da qualidade à altura do mito, não venceu os crescentes preconceitos do público. Envolvido em escândalos e perseguido por credores, cada vez mais fechado em si mesmo, Michael sofreu uma decadência física, moral e artística mais lenta que a de Elvis Presley – e uma danação pública que John Lennon nem imaginaria.
Certa vez, Michael afirmou que uma das metas de sua vida foi conquistar a imortalidade pela música. Não há dúvida de que conseguiu. Não só sua música. Há um pouco – ou muito – de Michael Jackson no canto e na dança de Justin Timberlake, Usher, Chris Brown, Rihanna... e até Prince, Madonna ou Black Eyed Peas. Antes de Michael Jackson, havia nichos sonoros para públicos específicos: o rock, o soul, a salsa. Depois de Michael Jackson, há... qualquer coisa que você vai ouvir, no universo do pop, nos próximos 20 anos.
Luís Antônio Giron
Revista Época, nº 580, 6/ 2009
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