domingo, 25 de maio de 2008

Guga para sempre


A épica trajetória do maior tenista brasileiro

O fascínio de Guga por Roland Garros é mais antigo que se imagina. Cinco anos antes da épica conquista de 1997, quando era um promissor juvenil de 15 anos, o menino deu um jeito de se esgueirar, com a credencial do torneio júnior vencida, nos corredores da Philippe Chatrier, a quadra central do Aberto da França. “Desde aquela primeira vez, meu sonho começou”, diz Guga, que por três vezes receberia ali o troféu de campeão das mãos de artistas do tênis como ele: Björn Borg, Boris Becker, Jim Courier.

Comparado a Picasso pelo rival Yevgeny Kafelnikov, apelidado de “Van Guga” pela beleza dos golpes, que lembravam pinceladas de um pintor numa tela, Gustavo Kuerten se despede do tênis nos próximos dias em Roland Garros – se é que um imortal pode dizer adeus. Não haveria cenário melhor que Paris para um grand finale. Foi no saibro da quadra central que Guga rabiscou um coração, homenagem ao público que o apoiou nos três títulos, em 1997, 2000 e 2001. O vento apagou o desenho, mas não as obras-primas que o brasileiro executou ali e que ficarão gravadas na história do tênis.

Em 1992, o melhor tenista brasileiro era Jaime Oncins. Em Roland Garros, Guga viu Oncins derrotar Ivan Lendl, ex-número 1 do ranking mundial e cabeça-de-chave número 10. “O Jaime estava perdendo, começou a virar e ganhou em cinco sets. Foi incrível.” O menino catarinense sonhou naquele momento que poderia ter o mesmo brilho.

Pois Guga brilhou muito mais que qualquer outro homem no tênis brasileiro (no feminino, o Brasil teve nos anos 60 outro fenômeno, Maria Esther Bueno, campeã três vezes em Wimbledon e quatro no Aberto dos EUA). Jaime Oncins chegaria às oitavas-de-final em Roland Garros naquele ano de 1992, melhor resultado nacional desde Thomaz Koch, que atingira às quartas-de-final em 1968. Quase nada, diante dos três títulos de Guga em Roland Garros. O catarinense foi o número 1 do mundo durante 43 semanas, entre 2000 e 2001 (antes dele, o melhor brasileiro fora Koch, 24º do ranking em 1974). Ganhou 20 títulos (contra sete de Luiz Mattar). Disputou 552 partidas no circuito profissional (Fernando Meligeni: 419) e venceu 65% (Thomaz Koch: 52%). Ganhou US$ 14.779.188 em prêmios (Meligeni: US$ 2,6 milhões). Disputou 94 partidas de Grand Slam (Meligeni: 58), sem contar o Aberto da França desta semana, em que o sorteio pôs o francês Paul-Henri Mathieu, 19º do ranking, como adversário de Guga.

Guga encantou o mundo do tênis desde o Roland Garros de 1997, com seu jeito tranqüilo e carismático de surfista de cabelo encaracolado. Aos poucos, o público conheceu a história da família Kuerten, fundamental no sucesso de Guga. O pai, Aldo, morreu de um ataque cardíaco na cadeira de árbitro de uma partida de tênis em Curitiba. Guga tinha 9 anos. O público não o conheceu, mas testemunhou a união dos demais membros da família – era comum ver nas arquibancadas Olga, a avó que pesquisava informações sobre os adversários do neto; Alice, a mãe, e os irmãos Rafael e Guilherme – este, vítima de uma paralisia cerebral que contribuiu para sua morte precoce, em novembro passado, aos 28 anos. Pode-se incluir nessa família o eterno treinador, Larri Passos, cuja parceria só foi rompida durante um breve ano, quando Guga buscava todas as soluções possíveis para voltar a jogar bem.

Nesta semana, em Paris, Guga não está hospedado no hotel barato onde – por simplicidade e superstição – costumava ficar durante o Roland Garros, mesmo depois de fazer fortuna. O Mont Blanc deu lugar a um hotel mais sofisticado. Hoje, Guga fica no Villa Escudier, uma pensão de luxo ao lado de Roland Garros, charmosa, com quartos amplos e vista para um pequeno jardim. Ali também ficam outros jogadores. Guga janta todas as noites em um restaurante italiano próximo ao hotel. Chegou a acreditar que o segredo das vitórias era o risoto da casa. Quando não está jogando, Guga vai ao Terra Samba, um restaurante brasileiro, ou a casas badaladas dos Champs-Elysées, como a L’Arc e o Bar Fly.

O costume de ajeitar-se em qualquer lugar veio do início sacrificado. Conheci Gustavo Kuerten, em 1992, em Wimbledon, quando ele tinha 15 anos e estava disputando o torneio juvenil. Não é casual que o tenha visto pela primeira vez no exterior. Já estar rodando o mundo nessa idade era a demonstração de sua determinação em deixar o conforto da casa, em Florianópolis, e seguir o único caminho possível para a carreira profissional: viajar.

Nesse aspecto, a importância de Larri Passos foi fundamental. O treinador assumiu, sem medir sacrifícios, a missão de transformar Guga num grande jogador. Certo dia, o pai, Aldo, depois de uma reunião em família que decidiu em que filho iriam investir – quem levou a pior foi o mais velho, Rafael, que hoje cuida dos negócios de Guga –, viajou com o desajeitado Gustavo s para Camboriú. Aldo pediu a Larri, já então um treinador conhecido em Santa Catarina: “Faça de meu filho um grande tenista”.

E Larri fez. Com a ajuda do treinador e a própria determinação, Gustavo Kuerten viveu grandes momentos. Além do tri em Roland Garros, Guga considera uma das conquistas mais marcantes a Masters Cup de Lisboa, em 2000. “Ganhei numa só semana do Andre Agassi, do Pete Sampras, do Magnus Norman e do Yevgeny Kafelnikov. Foi incrível” (leia a entrevista ). Outra façanha inesquecível foi ter batido Roger Federer, já número 1 do mundo, em Roland Garros, em 2004, por 6/4, 6/4, 6/4. “Não vejo nenhuma fórmula secreta para vencer Federer”, diz Guga hoje. “Você tem de competir, acreditar e acreditar.” Por pouco o brasileiro não levantou um quarto troféu naquele ano. Perdeu para o argentino David Nalbandian, num jogo equilibrado. Se tivesse passado, teria pela frente verdadeiros “fregueses”: os argentinos Guillermo Coria e Gastón Gaudio.

Dali em diante, Guga foi freguês das dores. Já no Masters de Lisboa, em 2000, precisou de intenso tratamento para ir até o fim do torneio. Em 2000, pensava ser apenas um problema nas costas. O calvário começou mesmo no Aberto dos EUA de 2001. Fez um jogo épico diante de Max Mirnyi, que quase atravessou a noite. Nesse dia, “quebrou”. Já sabia que o problema estava no quadril. Venceu, mas a partir dali acumulou uma série de derrotas e perdeu a liderança do ranking para o australiano Lleyton Hewitt. Em vez de procurar tratamento, abusou do corpo. Parte da razão: na época a Associação dos Tenistas Profissionais pagava um bônus de US$ 800 mil para os jogadores que participassem de todos os torneios da Masters Series.

As derrotas seguidas abalaram a confiança de Guga. O combustível de qualquer atleta é a vitória, e psicologicamente o grande campeão ficou enfraquecido (leia o artigo de Paulo Nogueira). Por fim, no início de 2002, ele resolveu aceitar a cirurgia. Em Buenos Aires, ao perder para Agustín Calleri, na estréia, batia com a raquete no quadril e se dizia que tinha mesmo de “entrar na faca”. Seguiu para Nashville, Estados Unidos, e foi operado. Dois anos depois, em setembro de 2004, passou por procedimento semelhante em outra clínica americana, em Pittsburgh. Após a primeira operação, Guga ainda conseguiu jogar em bom nível. Quase chegou a disputar outra vez a Masters Cup, torneio que reúne os oito melhores tenistas da temporada. Depois da segunda, sua carreira praticamente acabou.

Mesmo sem resultados e com o nome ligado a derrotas seguidas, em vez de vitórias, Guga mostra mais uma vez por que é um ídolo. Criou uma bem bolada “turnê de despedida”, renovou contratos de patrocínio e voltou a ganhar destaque na imprensa, pelo menos até esta semana de despedida. Viveu um momento emocionante na Costa do Sauípe, Bahia, ao confessar, entre lágrimas: “Não é que não queira mais jogar, mas é que não consigo”. Partiu o coração dos brasileiros. Agora, volta a Paris sabendo que não poderá buscar outro título, mas brilhará como sempre brilhou em sua iluminada carreira.

Chiquinho Leite Moreira, de Paris (França)
Época, Ed. 523

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