domingo, 24 de janeiro de 2010

Uma falha não é um pecado

No dia 1º de novembro de 1755, festa de Todos os Santos, uma combinação apavorante de terremoto com tsunami destruiu a cidade de Lisboa, a capital de Portugal. Muitas igrejas importantes foram destruídas e muitos fiéis devotos sucumbiram com elas. O acontecimento cataclísmico foi um estímulo para dois grandes empreendimentos: o iluminismo europeu e o desenvolvimento da sismologia.

Voltaire e Jean-Jacques Rousseau estavam entre os que raciocinaram que nenhuma divindade poderia ter desejado ou ordenado a destruição da Lisboa católica, enquanto outros pensadores, entre eles Immanuel Kant, começaram a pesquisar as possíveis causas naturais para esses acontecimentos. Foram necessárias apenas mais umas poucas gerações antes de aparecer uma teoria viável do deslocamento continental, e hoje podemos identificar claramente a “falha” que se estende sob o Oceano Atlântico e ainda põe Portugal e outros países em risco.

Vivemos num planeta que vai esfriando e tem um interior vulcânico coberto inseguramente por uma fina camada de placas tectônicas em atrito. Terremotos e tsunamis são de esperar e podem, limitadamente, ser previstos. É uma idiotice perguntar de quem é a culpa. Esses deslocamentos geológicos não têm uma causa relacionada ao comportamento humano. Os crentes deveriam relaxar, nenhuma pessoa instruída vai perguntar a seus deuses “por que” esses desastres acontecem. Uma falha não é o mesmo que um pecado. Os crentes podem resistir a qualquer coisa, exceto à tentação. Como eles ficariam se coisas tão importantes e assustadoras tivessem explicações naturais e racionais?

O primeiro pastor a sair da toca foi aquele malévolo televangelista Pat Robertson, que anunciou na Rede de Difusão Cristã que os haitianos há muito tempo tinham feito um acordo com satã para recrutar ajuda diabólica contra o imperialismo francês. Por essa ofensa, Deus mataria bebês haitianos subnutridos 200 anos depois.

Robertson está tentando canalizar um evento que pode ter ocorrido em 1741, quando, acredita-se, uma grande cerimônia vodu foi celebrada pelos escravos revoltosos do Haiti. Depois de um sacrifício animal (um porco preto) ao espírito maternal de Ezili Danto, todos os presentes no ritual juraram matar seus senhores cristãos brancos. Isso às vezes é considerado o sinal para a revolta que, sob a liderança carismática de Toussaint L’Ouverture, expulsou os soldados franceses e os senhores de escravos do Haiti e estabeleceu a primeira república negra do mundo. O vodu mantém as pessoas com medo e as faz mergulhar na apatia. Isso foi explorado pelo horrível regime dos tonton macoutes de François “Papa Doc” Duvalier e seu filho abominável, que, por décadas, mantiveram o país como seu feudo movido a roubo.

Não é possível acreditar que o Todo- -Poderoso tenha dizimado tantos haitianos por causa da inacreditável sordidez de seus sacerdotes rivais. No momento, a opinião geral é que Robertson está fora do compasso e que são instituições de caridade cristãs que estão fazendo o trabalho mais difícil. Incito todos a pensar primeiro como seres humanos e a dar quanto puderem a qualquer organização de ajuda, especialmente o mais novo grupo de ajuda secular no site Non-Believers Giving Aid.

Christopher Hitchens, escritor, colunista da revistaVanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA

Revista Época - No. 610

http://revistaepoca.globo.com

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