domingo, 7 de outubro de 2007

George Harrison - Um divino guitarrista

O ex-beatle que dedicou sua vida à busca espiritual será tema de um documentário dirigido por Martin Scorsese.

O melhor filme sobre a história dos Beatles, na opinião de George Harrison, foi o longa-metragem The Rutles, um documentário fictício estrelado pela trupe de comediantes Monty Python. Em uma hora e 16 minutos de piadas perfeitas, o filme destroça o mito da beatlemania e humilha os maiores astros da música pop. Até o subtítulo – “Você só precisa de dinheiro” – é um contraponto sádico à utopia dos Beatles, que certa vez cantaram: “Você só precisa de amor”. Harrison adorou a ironia. “É o filme que mais se aproxima da verdade”, disse.

Na terça-feira, o diretor Martin Scorsese anunciou que fará um documentário sobre George Harrison. Não será uma paródia, como The Rutles. George, vitimado por um câncer na garganta em 2001, será assunto para um dos mais influentes cineastas vivos e aquele que mais entende de rock-‘n’-roll. Em 1978, Scorsese filmou a última apresentação do grupo The Band. O resultado, A Última Valsa, é considerado o melhor filme sobre o gênero. Nos últimos anos, lançou documentários sobre Bob Dylan e Rolling Stones.

“A música e a busca espiritual de Harrison ressoam ainda hoje”, disse Scorsese no anúncio da empreitada. “Estou ansioso para mergulhar mais fundo.” Ele terá acesso ao vasto arquivo de família e fará entrevistas com os ex-beatles sobreviventes. A expectativa é que Scorsese traga à tona lados menos conhecidos da personalidade do músico, como seu grande senso de humor.
George, o mais novo dos quatro beatles, ficou conhecido como o “beatle quieto”. Filho de um motorista de ônibus, ele nasceu em 1943 e foi criado na Inglaterra entre as severas restrições do pós-guerra. A escola não o interessava. Foi buscar empolgação no ritmo skiffle, um gênero parecido com o rock. Varava madrugadas ruminando as notas, de violão em punho, até os dedos sangrarem. Na escola, conheceu Paul McCartney, que o convidou a integrar a bandinha The Quarrymen.

John Lennon, o líder do grupo, não aprovava a idéia de ver um pirralho seguindo seus passos. Apesar de o convite ter partido de Paul, foi com Lennon que George mais se identificou. Ele adorava o senso de humor sardônico e as atitudes desvairadas do colega. Eles se tornariam grandes amigos.

Mesmo à sombra de dois talentos inigualáveis, George se destacava pelo bom gosto e pela economia, criando frases musicais lembradas com a mesma facilidade que a melodia principal. Compôs clássicos como “While My Guitar Gently Weeps” e “Taxman”.Mas tudo deve passar. Alguns anos e muitos sucessos depois, George estava amargurado com as duas músicas a que tinha direito. “Eu tinha tantas músicas que precisaria de cem discos para lançar o que eu tinha guardado em 1965”, disse. A atmosfera das gravações se tornara irrespirável. Nas sessões de Let It Be, as câmeras captaram uma discussão entre George e Paul. “O que você quiser que eu faça, eu faço. Se você quiser, eu não toco mais nada”, disse George. Lennon olhava, impávido, preso no estupor da heroína que corria em suas veias. A presença de Yoko Ono também não ajudava. A maior banda de todos os tempos morria ali.

O jovem ávido por respostas espirituais encontrou o que queria no som da cítara, instrumento que deu origem à guitarra. O instrumento indiano levou George a se interessar pelo hinduísmo, religião que seguiu até o fim da vida. Adepto da meditação transcendental, ele defendia a espiritualidade como alternativa às drogas. A filosofia da impermanência, um dos pilares das religiões orientais, tornou-se um segundo dialeto para ele. O desapego com que encarou as mudanças reflete-se em cada segundo de All Things Must Pass, seu primeiro LP pós-Beatles, lançado em 1970. Dali saiu o single de maior sucesso em sua carreira: “My Sweet Lord”, uma canção em que os gritos de “aleluia” se transformam em “hare krishna”. Era uma canção de amor a Deus.

Em 1971, no auge do sucesso, George reuniu Bob Dylan, Ringo Starr e Eric Clapton num show cuja renda seria revertida para a população de Bangladesh, que vivia o flagelo da guerra civil. Foi o primeiro concerto beneficente envolvendo celebridades, fenômeno que se repete com freqüência de lá para cá.

George passou a década de 1970 afastando rumores da sonhada reunião com os beatles. Concentrou-se nos próprios trabalhos, uma coleção de seis LPs cravejados de faixas memoráveis. Na década seguinte, produziu filmes. Não deu certo. Sem problemas. Voltou à música e conquistou a geração MTV com Cloud Nine, em 1989.

Silenciosamente, George saiu de cena e se dedicou à jardinagem, em seu castelo em uma região nobre da Inglaterra. Foi ali que viveu o drama de ser esfaqueado por um fã enlouquecido, em 1999. Já diagnosticado com câncer, ficou ainda mais recluso do que era. As palavras escolhidas pela viúva, Olivia, para anunciar sua morte, coroaram a busca espiritual do grande homem: “Ele se foi deste mundo como viveu, consciente da existência de Deus, sem medo da morte e em paz”.
Marcelo Zorzanelli
Época, Ed. 490 - 08/10/2007

Nenhum comentário:

 
Locations of visitors to this page