Já vou avisando: esta é, pelo menos em parte, uma coluna sobre a série televisiva Heroes. Aos que porventura achem esquisito ou despropositado abordar esse tema num espaço dedicado à biologia evolutiva, gostaria de contar um segredinho que anda cada vez menos bem guardado.
Ao contrário do que às vezes tentam nos fazer acreditar na escola, a ciência depende só em parte de dados coletados de forma exaustiva, análise fria e imparcialidade. A boa ciência também é boa narrativa, como uma série de TV de sucesso ou um arco de histórias clássico de quadrinhos. Os fatos, meus caros, não falam por si sós, especialmente quando são complicados – e uma narrativa coerente que seja capaz de amarrá-los é uma ferramenta indispensável para que a realidade, afinal, faça sentido.
O que nos leva de volta à saga de Hiro, o japonês que manipula o espaço-tempo, Claire, a cheerleader indestrutível, e companhia. Qualquer telespectador com um mínimo de boa vontade, mesmo que torça o nariz para o gênero super-heróico, provavelmente vai admitir que as peripécias de Heroes têm coerência interna, e das boas. A questão em jogo aqui é outra. Afinal de contas, o pano de fundo da série (e que muitas vezes vai parar em primeiro plano) é a evolução humana, e a evolução da vida de forma geral. Até que ponto ela faz jus à história que a biologia moderna tem contado sobre tema tão espinhoso?
Deus me livre de querer bancar o pitbull de Darwin, rosnando para toda e qualquer incoerência da trama, até porque isso não teria a menor graça. Nos parágrafos a seguir, é claro que vou falar das escorregadas científicas de Heroes, mas também gostaria de argumentar que o cenário do seriado é, ao mesmo tempo, mais e menos grandioso do que o revelado pela história da vida na Terra. E que, apesar das bobagens aqui e ali, ele captura o que talvez seja o essencial: como esse processo é digno do nosso assombro e da nossa admiração.
Afirmações extraordinárias exigem provas extraordinárias. Portanto, sem mais delongas, vamos à cena. Antes disso, aviso aos navegantes: o texto a seguir contém SPOILERS!
O gene do vôo
Suspeito que muita gente que assiste a série ache o geneticista Mohinder Suresh, responsável pelos momentos mais filosóficos da trama, um mala sem alça. Mas convenhamos, há que se respeitar um indiano com um inglês tão bom e que, ainda por cima, tem coragem de usar termos como “marcador genético” em pleno horário nobre.
Suresh é filho de um outro geneticista, Chandra, assassinado pelo vilão Sylar. Chandra Suresh tinha como obsessão rastrear os humanos superpoderosos cuja existência ele próprio tinha previsto, usando dados do Projeto Genoma Humano. (Tá bom, o Projeto Genoma Humano só estudou o DNA de um punhadinho de indivíduos, que não chegariam nem perto de completar o número de personagens principais da trama, quanto mais os 30 e tantos rastreados pelo pesquisador indiano. Abstraia.)
Lá pelas tantas, no livro no qual Chandra Suresh descreve sua tese ousada sobre a existência de pessoas com poderes especiais, aparece a frase: “Em meio a tantos genes, deve existir um com potencial para o vôo humano”. Essa talvez seja a maior mancada do retrato que Heroes faz da evolução – uma visão enganosa que já foi usada como arma mais de uma vez por opositores desinformados (ou desonestos, ou as duas coisas) da teoria evolutiva.
O argumento desses sujeitos pode ser caricaturado mais ou menos assim: se a evolução acontece o tempo todo, por que os macacos ainda não viraram gente? Ou por que nós ainda não aprendemos a voar, ou a respirar debaixo d'água? Afinal, qualquer modificação que permitisse a um ser humano realizar esse tipo de feito seria uma vantagem e tanto. Cadê ela?
O fato de que as mutações que funcionam como combustível da evolução são casuais (“aleatórias” é o termo mais exato), não tendo ocorrido, portanto, nenhuma que nos desse o potencial para voar ou bancar o Príncipe Submarino, é só parte da resposta. A outra, e provavelmente a principal, é que os corpos dos seres vivos não precisam só se adaptar ao ambiente em que vivem para alcançar o sucesso evolutivo: precisam também se adaptar a si próprios.
Isso porque talvez o gargalo mais estreito por onde os organismos precisam passar, a triagem mais dura imposta pela seleção natural, que deixa sobreviver apenas as combinações genéticas bem-sucedidas, é nascer – e nascer direito. Antes de enfrentar o ambiente externo, cada criatura precisa de um organismo cujas partes funcionam em harmonia. As modificações têm, quase sempre, um efeito em cascata: não é possível alterar uma peça sem afetar, de alguma forma, todas as outras, de forma que, a cada passo, as inovações mais radicais tendem a resultar em desastre.
Na prática, isso significa que é um bocado difícil “começar de novo” em termos evolutivos. Uma vez que um caminho é “escolhido” (com muitas aspas, já que decerto não existe decisão consciente aqui), todo o futuro de uma linhagem fica restringido por seu passado. Imagine, por exemplo, quão vantajoso seria para as baleias e golfinhos, tão parecidos com os peixes em vários aspectos, “reaprender” a respirar debaixo d'água. Seria o desastre dos desastres para a indústria baleeira, que só consegue caçar porque suas presas precisam voltar à tona para respirar de quando em quando.
Bem, faz pelo menos 50 milhões de anos desde que os tataravós das baleias voltaram para a água, mas as brânquias não reapareceram – nem vão reaparecer, arrisco-me a afirmar. Mas há uma restrição ainda mais sutil. Dizem que os ictiossauros, répteis aquáticos da Era dos Dinossauros, eram quase golfinhos à frente de seu tempo, apresentando um design incrivelmente parecido com os modernos primos do Flipper. No entanto, se fosse possível colocar ambos os tipos de bicho nadando lado a lado, seria moleza, depois de pouco tempo, dizer quem é quem. O truque?
O jeito de nadar. Pois os golfinhos, cujos ancestrais eram mamíferos terrestres de patas eretas, balançam a cauda de cima para baixo, tal como nós andamos – ao contrário dos peixes atuais e dos antigos ictiossauros, que abanavam o rabo lateralmente, como um lagarto ou cobra coleando o corpo.
Destino
Outra imagem poderosa (e provavelmente mais adequada) que a série evoca é a da imprevisibilidade do processo evolutivo – a de que uma espécie aparentemente comum, sem nenhuma vantagem clara sobre os demais competidores do jogo da vida, pode acabar assumindo uma posição de grandeza impensável.
Mais uma vez, isso pode parecer balela quando a teoria da evolução é retratada de forma caricatural – aquele velho papo de “só os mais fortes sobrevivem”. No entanto, o que a história da vida no planeta parece revelar é que as grandes reviravoltas muitas vezes têm pouco a ver com a vitória das criaturas que seriam as mais bem-sucedidas em condições normais de jogo, com o gramado do estádio sequinho e bem aparado.
Explicando a metáfora futebolística: durante muito tempo os paleontólogos gostavam de imaginar que os dinossauros foram destronados pelos mamíferos por serem lerdos, estúpidos, de cérebro de ervilha. Tudo indica, porém, que o fim deles, assim como várias das mudanças substanciais na composição biológica da Terra, foram eventos essencialmente aleatórios e catastróficos – feito a queda do asteróide que acertou o golfo do México há 65 milhões de anos.
Quem escapa desse tipo de catástrofe talvez – veja bem, talvez – tenha conseguido sobreviver por possuir as características necessárias para agüentar tempos difíceis. Mas não há garantia nenhuma de que essas mesmas características fizessem dos sobreviventes um grande sucesso numa competição “limpa”. E, no caso de dinossauros e mamíferos, os indícios que chegaram até nós sugerem exatamente o contrário. Existe, em outras palavras, um elemento de imprevisibilidade irredutível nessas grandes viradas.
Como já deve ter dado para antever, isso nos remete a outra palavrinha que está por toda parte em Heroes, mesmo quando não é pronunciada: destino. Era nosso destino criar uma civilização global que hoje monopoliza os recursos da Terra, assim como era o destino do pacato Hiro virar um herói?
A imensa maioria dos biólogos evolutivos tende a ver, na própria violência encarnada pelas grandes mudanças na história da vida, uma resposta negativa. Não haveria progressão discernível na sucessão majestosa, mas caótica, de seres vivos na terra, no mar e no ar. Teríamos chegado até aqui por um golpe de sorte quase inacreditável, mas uma nova catástrofe poderia pôr tudo a perder. Nosso castelo civilizacional pode parecer inexpugnável, mas é feito de areia, e as ondas do mar cósmico um dia vão alcançá-lo.
Esse, claro, é um jeito de encarar as coisas. No fundo, qualquer pronunciamento sobre o significado ou o propósito da nossa jornada por aqui está fora do alcance da ciência. Por isso, eu gostaria de deixar o destino de lado e terminar esta conversa com outro tema de Heroes que é caro ao coração humano: responsabilidade.
Seja lá por que motivos, os quase 4 bilhões de anos de evolução neste planeta fizeram de nós uma espécie que, nos seus melhores momentos, consegue transcender qualquer suposto imperativo para triunfar à custa dos outros. A capacidade para a compaixão, o impulso para conceber os outros seres humanos como igualmente importantes e valiosos, vai muito além do exemplo dos heróis da ficção ou da vida real. Conseguimos conceber a vastidão da aventura biológica que nos trouxe até aqui, os riscos e as oportunidades que ela guarda, e como ela é bela, apesar de terrível. Talvez essa capacidade não seja tão boa quanto um superpoder – mas pode muito bem ser o suficiente.
Reinaldo José Lopes - Membro da Editoria de Ciência e Saúde do G1
Nenhum comentário:
Postar um comentário