domingo, 21 de outubro de 2007

A verdadeira história de Schulz e Charlie Brown


Recém-lançada, obra destrincha trajetória de um dos maiores artistas dos EUA.

Charles Schulz, o criador da tira "Peanuts" (mais conhecida no Brasil por “Snoopy”), costumava dizer que desejaria ser Andrew Wyeth. O que Wyeth fez foi arte de verdade, resmungava ele, que se via apenas como um cartunista de jornal, um desenhista , cujo trabalho não permaneceria. Mas a verdade é que hoje a sua obra – destrinchada no recém-lançado “Peanuts and Schulz: A biography” (Harper Collins, 665 p., importado) - é lida por muito mais gente do que as que viram o trabalho de Wyeth.

Quando apareceu, nos anos 40, Schulz transformou completamente as tiras de jornais, reduzindo seus tipos infantis a quase abstrações - grandes cabeças redondas se equilibrando em corpos minúsculos. Diferentemente de seus pares nos quadrinhos, as tiras de “Peanuts” conseguiam registrar emoções adultas, como ansiedade, depressão e desilusão.

"Peanuts" foi amado por todo mundo: por "descolados", universitários (nos anos 60 especialmente); por presidentes (Ronald Reagan escreveu uma vez um bilhete de fã para Schulz, dizendo que se identificava com Charlie Brown); pelos astronautas da Apollo 10, que deram o nome de Charlie e Snoopy a seus veículos de órbita e de pouso. No seu auge, a tirinha atingia 300 milhões de pessoas em 75 países e 21 línguas todo dia. Os vários especiais animados para a TV continuam chegando ao topo das pesquisas (norte-americanas) de audiência sempre que são levados ao ar, e o musical "Você é um cara legal, Charlie Brown", depois de ter lotação esgotada durante quatro anos na Broadway, agora é uma peça básica de colégios e produções de teatro amadoras - o musical mais produzido de todos os tempos.

O sucesso dos quadrinhos e de seus subprodutos - calendários, lençóis, lancheiras, canecas e tantos outros - fez de Schulz um homem extremamente rico. Nos anos 80 ele era um dos dez artistas mais bem pagos da América, bem próximo de Oprah e de Michael Jackson. Na verdade, se chamarmos de artista alguém que pinta ou desenha, não é demais dizer que Charles Schulz foi o artista americano mais popular e bem-sucedido que já existiu. E foi também, segundo mostra a biografia de David Michaelis, um dos mais solitários e infelizes.

Como Michaelis mostra, "Peanuts" era quase transparentemente biográfica. Houve mesmo uma inatingível Garota-ruiva. Seu nome era Donna Mae Johnson, e ela rechaçou Schulz em julho de 1950. Ele amargou a rejeição por toda sua vida. Charlie Brown, sem-graça, desiludido, mas secretamente ambicioso, era o próprio artista, claro, assim como Linus, o esquisito, e Schroeder, meticuloso e talentoso. E acima de tudo, Schulz era também Snoopy, com seus delírios, suas fantasias, seu sentimento de ser sempre incompreendido e desvalorizado. Violeta, com suas vibrações maléficas, e Lucy, mandona, impaciente e sarcástica, eram todas as mulheres controladoras e repressivas da vida do artista, especialmente sua mãe e sua primeira esposa, Joyce.

Mas, exceto pelas tiras, Schulz deixou poucas pistas sobre o que estava se passando lá dentro de sua cabeça. Mesmo que tenha sido um dos primeiros a introduzir temas psicológicos nos quadrinhos, com Lucy e seu quiosque psiquiátrico de plantão, ele era decididamente não-analítico, sua natureza era um mistério tanto para ele quanto para todo mundo." Levei muito tempo para me tornar um ser humano", disse Schulz ao entrevistador de uma revista em 1987.

As pessoas que conheciam Schulz geralmente o chamavam de Sparky (cintilante), apelido dado por um tio a ele quando nasceu em referência a um personagem de outra tira de quadrinhos. Era um apelido ironicamente inapropriado - não havia nada de cintilante no jovem Sparky, que era miúdo, tímido, estranho - e fiel ao mesmo tempo, vinculando-o, desde pequeno, ao que escolheu como o trabalho da sua vida : produzir quadrinhos diários para jornal.

Schulz nasceu e cresceu num bairro de classe operaria. Seu pai, nascido na Alemanha, falava alemão em casa e tinha uma barbearia (assim como o pai de Charlie Brown). Sua mãe, que nunca completou o primário, veio de uma família de fazendeiros noruegueses casmurros e beberrões, e era uma dessas pessoas que se sentem inadequadas e superiores ao mesmo tempo. Michaelis a descreve como sendo fria, distante, cínica e insolente, e a culpa por muitas das angústias de Sparky, especialmente por seu sentimento constante de não ser amado o suficiente.

Schulz foi criado num ambiente sufocante, regido pela igreja e pela família, onde a leitura de livros era vista como algo estranho e onde as crianças, longe de estarem acima da média, eram desencorajadas a desenvolver sua auto-estima.

Tendo entrado cedo na escola primária, Schulz estava sempre um ano à frente dos demais colegas, o que fez com que pelo resto da sua carreira escolar fosse sempre o menor, o mais franzino e a criança mais estranha da classe. Mesmo sendo um jogador decente de hockey e bom o suficiente em golfe para ser o número 2 no time da escola, quando chegou ao segundo grau Schulz estava tão tomado pela timidez que passava quase invisível. "Eu não era realmente odiado ", diria ele mais tarde. "Ninguém se importava muito comigo".

Sua chance de aparecer foi perdida quando os quadrinhos que desenhou para o álbum anual da escola foram inexplicavelmente rejeitados - uma rejeição que ele nunca perdoou, assim como não perdoou as garotas que não notaram que ele as adorava à distância.

Ao término da graduação, sua timidez e insegurança o impediram de freqüentar a faculdade de artes e o empurraram para um curso por correspondência na Art Instruction Inc., o tipo de escola que ensinava a fazer anúncios no verso de caixas de fósforo. (Ele achou as lições tão instrutivas que eventualmente se juntou ao corpo docente e anos depois fez parte do conselho da instituição).

Em 1942 Schulz foi convocado para a guerra e, desconsolado e aterrorizado, foi para o quartel logo depois que sua mãe faleceu. Mas, na verdade, ele foi bem sucedido no exército e voltou mais confiante em si mesmo. Começou até a sair com garotas - mesmo que achasse que o presente adequado para elas fosse uma Bíblia. (Toda sua vida Schulz foi o mais enquadrado possível: ele não fumava, não bebia ou falava palavrões, inspirado no fato de que Jesus também não fazia nada dessas coisas. O vinho de Canaã, o jovem Sparky costumava afirmar, era não-alcoólico).

Em 1951 Schulz casou-se com Joyce Halverson, uma mulher de 22 anos divorciada, com uma filha pequena de um casamento equivocado e curto com um cowboy. Ele tratou de adotar a filha, Meredith, e passou a dizer que ela era sua, mesmo quando a adolescente começou a fazer perguntas delicadas. De certo modo, era provàvelmente um casamento de conveniência para ambos, mas por um tempo foi feliz o suficiente, e eles tiveram quatro filhos juntos. Sparky, contudo, era um pai e marido muitas vezes desatento e indiferente, por estar absorvido em si mesmo e alimentando secretamente grandes ambições - era casado com seu trabalho na verdade.

Depois de muitas rejeições e falsos começos, ele finalmente tinha um quadrinho semanal chamado "Li'l Folks" publicado na “St. Paul Pioneer Press”, e que passou a ser distribuído no país em1950 pela United Feature, que insistiu para que o título fosse mudado para "Peanuts". Schulz odiava o nome mas concordou, adicionando isso a sua lista sempre crescente de mágoas. Ele pensou inicialmente em fazer quadrinhos de ação, mas começou a desenhar crianças porque isso parecia vender bem. As primeiras tiras já chegavam ao que hoje parece ser o autêntico tom emocional "schulziano" - "Sim, senhor! Velho Charlie Brown.... Como o odeio!" - mas levou mais tempo para o desenho evoluir, para as cabeças dos personagens crescerem e os membros encolherem.

"Peanuts" teve um crescimento lento no início. Emplacou nos anos 60, quando parecia falar quase acidentalmente para todos que vivenciavam o hiato de gerações. Em seguida, quase afundou em uma rodada de licenciamentos para uma maré de bugigangas envolvendo os nomes dos personagens. Schulz dizia "sim" para tudo, por mais popularesco que fosse - brinquedos, cartões, livros, camisetas - até o ponto em que mesmo seus fãs começaram a reclamar que ele estava se vendendo barato.

O que salvou a tirinha, sugere Michaelis, foi a transformação de Snoopy em personagem principal no final dos anos 60, e a maneira como a vida surreal e fantástica do cãozinho de Charlie Brown passava a dominar os quadrinhos.

À essa altura, Schulz, sua mulher e filha viviam na Califórnia do Sul, numa Disneylândia privada, com direito a estábulos, mini-campos de golfe e o ringue de patinação no gelo. Apesar de seu sucesso, Schulz andava irritadiço, sozinho, deprimido, e cada vez mais sujeito a ataques de pânico; Joyce se sentia sobrecarregada e pouco valorizada. As brigas entre eles, seus períodos de frieza mútuos, inspiraram alguns dos quadrinhos de “Peanuts”- as tiras em que Charlie e Lucy parecem presos na eterna luta homem/mulher, e onde ela sempre leva a melhor.

À medida que entrava na meia-idade, Schulz ganhou corpo, parou de usar corte de cabelo militar e descobriu que era até atraente para as mulheres. Nesse período, revela a biografia, o criador de Snoopy teve uma relação extra-conjugal séria, e em 1973, um ano mais ou menos depois de se divorciar de Joyce, se casou com Elisabeth Jean Forsyth, dezesseis anos mais jovem que ele, que tinha encontrado – onde mais poderia ser? - numa pista de patinação no gelo.

Este segundo casamento foi mais feliz, devido ao empenho maior de Jeannie, como ela era conhecida. Mas Schulz ficava muitas vezes reservado e de humor alterado, e não deixava de flertar compulsivamente.

Mas a vida de Schulz é uma história clássica americana: a do gênio solitário e não compreendido que se apega a seus sonhos, consegue riqueza e fama, e descobre que elas não o fazem feliz no final. O fato de ter escolhido os quadrinhos como seu veículo o vincula, por um lado, a figuras pioneiras e igualmente não compreendidas como Winsor MCay, criador de “Little Nemo”, e George Harriman, pai de “Krazy Kat”. Por outro lado, sua carreira também lembra a de nomes ainda atuantes nas histórias em quadrinhos como R. Crumb, Chris Ware e o artista gráfico Seth - que está editando no momento a coleção completa das obras de "Peanuts” para a Fantagraphics -, artistas com os quais partilha temas como os da solidão, da perda e da incapacidade de fazer conexões.O Jimmy Corrigan de Ware é em muitos aspectos o próprio Charlie Brown transformado, ainda que adolescente, em um velho precoce. E em Crumb podemos ver o que Schulz poderia ter sido se tivesse conseguido deixar sua raiva de lado.

Michaelis, que contou com a cooperação da família Schulz para obter as informações para a biografia, conta esta história com brilho e de maneira envolvente, e, em geral, de modo sucinto e sem repetições. Encontramos bem menos do que se poderia esperar sobre a rica tradição americana de tiras de jornais que gerou Schulz, e mais sobre assuntos como os padrões de metástase de um câncer cervical (doença que matou a mãe de Schulz). Mas, ao longo de seu livro, Michaelis mantém o afeto pelo seu biografado, sem perder de vista o quão exasperador e narcisista Schulz podia ser também.

Mas talvez a atitude mais sensata de Michaelis tenha sido a de apimentar as páginas da biografia com as próprias tiras de "Peanuts", dúzias delas, geralmente sem comentários ou notas de pé de página ou mesmo datas. Com isso, o autor consegue nos lembrar continuamente da importância do biografado e do potencial não apenas humorístico, mas de sentimentos e de eloqüência, que reside estranhamente nesta forma de arte onde Schulz construiu sua morada.

New York Times

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