domingo, 3 de junho de 2007

Deus não é grande como diz o islã

Há dúvidas se o islã é mesmo uma religião. Inicialmente, serviu para satisfazer a necessidade dos árabes de um credo próprio. E desde sempre esteve associado à língua e às conquistas posteriores. Essas conquistas, embora não tão notáveis quanto as de Alexandre, o Grande, com certeza davam a impressão de contar com a vontade divina, até começarem a diminuir nos Bálcãs e no Mediterrâneo. O islã não passa de um malfeito aglomerado de plágios, que usa livros e tradições anteriores conforme a necessidade do momento.
Maomé morreu aproximadamente em 632 pelo nosso calendário. O primeiro relato sobre sua vida foi estabelecido 120 anos depois, por Ibn Ishaq. O original se perdeu, o que existe é uma reconstituição de autoria de Ibn Hisham, que morreu em 834. Além disso, não há consenso sobre como se estabeleceu o Alcorão. O problema se complica mais ainda por uma questão sucessória. Maomé era general e político e não deixou indicação sobre quem deveria sucedê-lo. As disputas começaram imediatamente depois de sua morte, e houve então o primeiro grande cisma do islã - entre sunitas e xiitas. A associação do islã com um califado terreno marcou-o desde o começo como obra humana.
Algumas autoridades muçulmanas dizem que durante o califado de Abu Bakr, logo após a morte de Maomé, surgiu o medo de que suas palavras, transmitidas oralmente, fossem esquecidas. Foi decidido, então, que todas as testemunhas vivas e tudo o que fora anotado de seus dizeres fossem reunidos. Tudo foi dado para Zaid ibn Thabit, secretário do profeta, redigir.
Isso daria ao Alcorão uma data próxima da vida de Maomé. Mas não há consenso sobre a veracidade da história. Alguns dizem que foi Ali - o quarto califa - quem teve a idéia. Outros - a maioria sunita - afirmam que foi Osman, que reinou de 644 a 656. Segundo essa versão, Osman, quando soube que soldados brigavam por causa de versões discrepantes do Alcorão, mandou Zaid ibn Thabit juntar os diversos textos e escrever uma versão única. Foram enviadas cópias a Kufa, Bassora, Damasco e outros lugares, ficando o original em Medina. Mesmo aceitando essa versão, a tentativa de Osman de acabar com as disputas foi em vão. O árabe escrito tem duas características difíceis: usa pontinhos para diferenciar consoantes como "b" e "t" e, na forma original, não existem símbolos para as vogais curtas. Isso permitiu leituras muito diferentes da versão de Osman.
A situação é pior quanto ao hadith, a literatura oral que supostamente transmite o que Maomé e seus companheiros disseram e fizeram. Cada hadith precisa da confirmação de um isnad, uma seqüência de testemunhos confiáveis. As seis coleções oficiais foram coletadas séculos depois dos eventos. Um dos compiladores, Bukhari, morreu 238 anos depois de Maomé. Ele é tido como honesto pelos muçulmanos. Dos 300 mil testemunhos que juntou na vida, decidiu que 200 mil não tinham nenhum valor.
A posterior exclusão de tradições duvidosas e isnads questionáveis reduziram o total a 10 mil. Qualquer um é livre para acreditar que, a partir dessa massa amorfa de testemunhos iletrados e mal lembrados, o fiel Bukhari, mais de 200 anos depois, tenha conseguido selecionar só os autênticos.
Conta-se que, às vezes, quando tinha uma revelação em público, Maomé era tomado por dores e ouvia um zumbido. Gotas de suor começavam a brotar de seu corpo, mesmo em dias frios. Cristãos desalmados sugeriram que ele seria epiléptico (sem dar importância aos sintomas de Paulo no caminho para Damasco), mas não precisamos ir por aí. Basta refazer a pergunta do filósofo David Hume: o que é mais provável - que um homem seja usado por Deus como mensageiro de revelações já existentes ou que as profira e alegue que foi enviado por Deus?
Quanto às dores, ao zumbido e ao suor, resta lamentar que, ao que parece, a comunicação direta com Deus não seja uma experiência de calma, beleza e lucidez.

Christopher Hitchens, escritor.
Colunista da revista Vanity Fair e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books.
Revista Época
http://revistaepoca.globo.com/
(Ed. 471 - 28/05/2007)

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