quinta-feira, 7 de junho de 2007

João Cabral de Melo Neto - Poemas...




O esquadro disfarça o eclipse
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.
(Pedra do Sono, 1940/1941)



Contemplando a maré baixa
nos mangues do Tijipió
lembro a baía de Dublin
que daqui já me lembrou.

Em meio à bacia negra
desta maré quando em cio,
eis a Albufera, Valência,
onde o Recife me surgiu.

As janelas do cais da Aurora,
olhos compridos, vadios,
incansáveis, como em Chelsea,
vêem rio substituir rio.

E essas várzeas de Tiuma
com seus estendais de cana
vêm devolver-me os trigais
de Guadalajara, Espanha.

Mas as lajes da cidade
não me devolvem só uma,
nem foi uma só cidade
que me lembrou destas ruas.

As cidades se parecem
nas pedras do calçamento
das ruas artérias regando
faces de vário cimento,

Por onde iguais procissões
do trabalho, sem andor,
vão levar o seu produto
aos mercados do suor.

Todas lembravam o Recife,
este em todas se situa,
em todas em que é um crime
para o povo estar na rua,

Em todas em que esse crime,
traço comum que surpreendo,
pôs nódoas de vida humana
nas pedras do pavimento.

(Paisagens com figuras, 1954/1955)



Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
Coisas, se na origem apenas expressões
de ciganos dali; mas claras e concisas
a um ponto de se considerarem em coisas,
bem concretas, em suas formas nítidas.
Algumas delas, e fora as já contadas:
não esparramarse, fazer na dose certa;
por dereito, fazer qualquer quefazer,
e o do ser, com a incorrupção da reta;
com nervo, dar a tensão ao que se faz
da corda de arco e a retensão da seta;
pés claros, qualidade de quem dança,
se bem pontuada a linguagem da perna.
(Coisas de cabeceira somam:exponerse,
fazer no extremo, onde o risco começa.)

(A Educação pela Pedra, 1962/1965)



Estatura pequena e nítida
das cidades de onde ela era:
daquele justo para o abraço
que é de Cádiz, onde nascera,
e de Sevilha, onde vivia
e se dizia, mas não era:
cidades que ainda se podem
abraçar de uma vez, completas,
e que dão certo estar-se dentro,
àquele que as habita ou versa,
a entrega inteira, feminina,
e sensual ou sexual, de sesta.

(Museu de Tudo, 1966/1974)



Já nada resta do Arenal
de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.
Já não mais as frotas das Índias,
e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.
Já Riconete e Cortadilho
dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.

Urbanizaram num Passeio
o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.

(Sevilha Andando, 1987/1989)


Sevilha em casa

Tenho Sevilha em minha casa.
Não sou eu que está chez Sevilha.
É Sevilha em mim, minha sala.
Sevilha e tudo o que ela afia.
Sevilha veio a Pernambuco
porque Aloísio lhe dizia
que o Capibaribe e o Guadalquivir
são de uma só maçonaria.

Eis que agora Sevilha cobra
onde a irmandade que haveria:
faço vir as pressas ao Porto
Sevilhana além de Sevilha.

Sevilhana que além do Atlântico
vivia o trópico na sombra
fugindo os sóis Copacabana
traz grossas cortinas de lona
(Sevilha Andando, 1987/1993)


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