Biografia do jovem Stalin revela um personagem - misto de poeta, terrorista e Don Juan - muito mais fascinante do que se sabia. Pena que não seja ficção.
Mesmo depois de ter sido passado para trás, Leon Trótski, o sofisticado e presunçoso intelectual que se considerava o herdeiro natural de Lênin, não entendeu. Continuou retratando Joseph Stálin, o brutal ditador que assumiu o controle da União Soviética em 1924, como uma mediocridade cinzenta. Uma nulidade no panteão autoglorificado de teóricos e oradores do marxismo que fizeram a revolução russa. Durante décadas, o Stálin de Trótski dominou a historiografia. O próprio ditador, no auge do poder na década de 1930, fez todo o possível para manter essa imagem. Era melhor para o grande estadista que seu passado pré-revolucionário fosse esquecido.
Durante a revolução de 1905, que pôs fim ao absolutismo na Rússia, Trótski chefiava o Soviete de São Petersburgo e desafiava o poder do czar com seus discursos inflamados. Enquanto isso, escreveu Trótski anos depois, Stálin passava o tempo em um escritório despretensioso na Geórgia escrevendo artigos insossos para jornais.
Errado. Em 1905, Joseph Djugashvilli ainda não era Stálin. Mas, conhecido como Soso, Camarada Koba, o Padre, ou outros vários nomes tão falsos quanto Stálin, estava, às vezes literalmente, pondo fogo em sua Geórgia natal e no vizinho Azerbaijão, pólo petrolífero da Rússia pré-revolucionária.
Garimpando uma impressionante massa de documentos inéditos e pouco consultados até hoje, o historiador britânico Simon Sebag Montefiore montou em Young Stálin um retrato muito mais verossímil, e fascinante, que a personalidade gélida e sem graça que ele próprio desenvolveu assim que chegou ao poder. Sebag Montefiore já havia publicado Stálin: a Corte do Czar Vermelho, em que narra a vida no círculo do poder em torno de Stálin. Agora, o historiador volta a seu personagem. O Stálin pré-1917 que revela é um arruaceiro mulherengo que circulava no submundo do crime e das organizações revolucionárias de um império russo em decomposição. A encarnação perfeita do revolucionário sem medo da violência capaz de assumir a “vanguarda do proletariado” que Vladimir Lênin estava teorizando de seu exílio na Suíça.
Mas não foi a teoria de Lênin que criou Stálin. A figura nasceu do terreno fértil da Geórgia. Conquistada pela Rússia no fim do século XIX, a Geórgia se orgulhava de sua nacionalidade, de sua língua. Nunca deixou de sonhar com sua independência e cultivava a fama de seus rebeldes. Stálin nasceu em Gori, uma cidade na base do Cáucaso, cruzamento entre a parte européia e asiática do império russo. No bazar da cidade, armênios e tártaros se misturavam aos georgianos. Cristãos ortodoxos, muçulmanos e judeus compravam e vendiam o vinho, as frutas, as peles e os produtos de couro da região, levados e trazidos à cidade em lombo de burro ou caravanas de camelos.
Nos feriados religiosos, depois da missa, os habitantes de Gori praticavam o esporte oficial da cidade: briga. Organizados em dois times, trocavam socos e sopapos, começando com lutas individuais entre crianças, subindo até a categoria adulta. Aí eram todos contra todos até acabar o dia. Nos dias normais, gangues de crianças e adolescentes se dedicavam a brigar umas com as outras. Sem regras. Nas tumultuadas ruas da cidade, havia pouca segurança e muita oportunidade para um garoto arrumar encrenca. Soso, como Stálin era conhecido desde criança, não perdia nenhuma. Mas ele não era só líder de gangue. Era também aluno da escola mantida pela Igreja Ortodoxa Georgiana na cidade, dedicada a preparar os futuros seminaristas. Era uma raridade. Em geral, a escola só aceitava filhos dos padres ortodoxos, para os quais não há celibato. Filho de um sapateiro bêbado e violento que acabou abandonando a família, Stálin só conseguiu a vaga pelos esforços de sua ambiciosa mãe. E de seu talento incomum para os estudos. Na escola, o inteligente Soso não era só o melhor aluno, era também um excelente tenor e cantava no coro da igreja.
Perdeu a fé e aderiu ao marxismo quando já estava no seminário de Tiflis, capital da Geórgia, aos 20 anos. Daí para a frente, até a chegada ao poder, levou uma vida clandestina. Desprezava profundamente os intelectuais de esquerda. Mas não por se sentir inferior a eles intelectualmente. Continuava a estudar avidamente como se continuasse no seminário. Era capaz de ler Platão no original grego. Sebag Montefiore narra uma festa em que os companheiros socialistas do futuro Stálin se embebedavam. Ele se dedicava a estudar a biografia de Napoleão Bonaparte e anotar os “erros” cometidos pelo marechal que se tornou imperador da França. Stálin, já profundamente ambicioso, apenas achava que os intelectuais não faziam o que era necessário para que a revolução realmente acontecesse.
Ele fazia. Qualquer coisa. Assalto a banco, assassinato de inimigos, condenação e execução de traidores do grupo, incêndio criminoso, cobrança de taxa de proteção dos ricos empresários da Geórgia ou do Azerbaijão. Nada estava além dos limites de Stálin se a ação fosse render dinheiro, armas ou ganhos políticos para o Partido Bolchevique. E podia contar com a proteção de seus conterrâneos. Até os policiais da Geórgia ajudavam a esconder seus rebeldes da polícia secreta do czar russo.
O papel de chefe de quadrilha, quase como o de um mafioso, se combinava com o de ousado agitador de massas. Um dia depois de Stálin arrumar seu primeiro e único emprego como operário, na refinaria de petróleo do barão Rotschild, a empresa foi atingida por um incêndio. Stálin, provavelmente o mandante do crime, organizou o trabalho de apagar o fogo. Depois, foi cobrar dos patrões a gratificação de praxe. Diante da recusa dos administradores da refinaria, que sabiam ter sido um incêndio criminoso, Stálin chegou aonde queria. Deflagrou a primeira greve de petroleiros da Rússia.
Como orador, era direto. Os operários de verdade com quem convivia, ao contrário do nobre Lênin ou do dono de terras Trótski, não tinham dificuldade em entendê-lo. Seu magnetismo pessoal sempre foi capaz de atrair a lealdade de um bando de seguidores dispostos a obedecer a qualquer ordem. O mesmo magnetismo que fez o rapaz magro, manco, com um defeito no braço e marcas de varíola no rosto conquistar uma fileira de mulheres. Como Olga Alliluyeva, que, em épocas diferentes, foi sua amante e sua sogra. Com a mesma frieza com que planejava greves, assaltos ou assassinatos, o jovem revolucionário não se acanhava de abandonar mulheres e filhos, reconhecidos ou não. Como os dois que teve com Lidia Pereprygina, seduzida por Stálin aos 13 anos.
Por Marcelo Musa Cavallari
Época, nº 474 (18-06-2007)
Foto: Hutton-Deutsch Collection/Corbis/Latin Stock
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