quinta-feira, 7 de junho de 2007

A sabedoria de Montaigne - Trechos dos Ensaios

Deus na filosofia
Tales, o primeiro a estudar o assunto, achava que Deus é um espírito que tirou da água todas coisas. Para Anaximandro os deuses nascem e morrem em certas épocas e constituem mundos cujo número é infinito. Anaxímenes pensa que Deus é ar, existe em quantidade incomensurável e está sempre em movimento. (...) Platão tem a respeito diversas maneiras de ver. No Timeu, é de opinião que não se pode dizer quem criou o mundo. Nas Leis, que não adianta indagar o que seja Deus. Em outros trechos de suas obras diviniza o mundo, o céu, os astros, a terra, as almas (...) Segundo Eusipo, sobrinho de Platão, Deus é uma força animada que governa todas as coisas (...) Xenófanes representa Deus sob a forma de uma bola vidente e inteligente, mas não respirando e nada tendo em comum com a natureza humana (...) Depois disso, ide confiar na filosofia! (p 239)
Ser ou não ser!
"A vida que vivemos é a vida, ou é, esta, aquilo a que chamamos morte?" (Eurípedes) Efetivamente, por que pretendemos ser, quando isso dura um instante, um relâmpago numa noite eterna, uma simples e curta interrupção em nossa condição natural e perpétua, porquanto a morte ocupa tudo o que precede e segue esse instante e até boa parte dele? (...) Nausífanes, diz que as coisas que parecem ser nem são nem não são; que só a incerteza é certa; Parmênides, que nada deve existir, à exceção de um Ser único; Zenão, que nem um ser único existe e que não há nada. (...) A conclusão de todos esses conceitos é que a natureza não passa de uma sombra confusa e vã. (p 244)

Sobre a alma
Crates e Dicearco afirmavam que a alma não existia (...) Platão assegurava que era uma substância dotada de movimento próprio; Tales, uma natureza sem repouso; Asclepíades, o exercício dos sentidos; Hesíodo e Anaximandro, uma substância composta de terra e água; Parmênides, de terra e fogo; Empédocles, de sangue (...) Possidônio, Cleantes e Galeno, um calor ou substância de compleição quente, "as almas têm a força do fogo e uma origem celeste (Virgílio); Hipócrates, um espírito espalhado pelo corpo; Varro, o ar penetrando pela boca, aquecendo os pulmões, purificando o coração e se expandindo pelos membros; Zenão, a Quinta essência dos quatro elementos; Heraclides Pôntico, a luz; Xenócrates e os egípcios, um coeficiente [resultado de divisão] variável (...) e não olvidemos a opinião de Aristóteles para o qual a alma é o que faz naturalmente mover-se o corpo. Denomina-a enteléquia (...) E agora, depois desta enumeração de opiniões, "qual a verdadeira? Só um deus pode saber", diz Cícero. (...) Mais ainda: eis os estóicos, pais da prudência humana. (...) Há entre eles quem pense que o mundo foi feito para prover de corpo os espíritos que em razão de seus erros perderam a pureza recebida ao serem criados, tendo sido a primeira criação exclusivamente incorpórea. E, segundo sua espiritualidade, se encarnam tais corpos em condições mais ou menos penosas ou fáceis. (p 251/252)

Sobre o ócio
Nas terras ociosas, embora ricas e férteis, pululam as ervas selvagens e daninhas, e para aproveitá-las cumpre trabalhá-las e semeá-las a fim de que sejam úteis. (...) Assim igualmente os espíritos: se não os ocupamos com certos assuntos que o absorvam e disciplinem, enveredam ao léo, sem peias (sem freios), pelo campo da imaginação. (p 21)(...) "na ociosidade o espírito se dispersa em mil pensamentos diversos" (Lucano), e ao contrário do que se imaginava, caralocolando como um cavalo em liberdade, cria ele cem vezes mais preocupações do que quando tinha um alvo preciso fora de si mesmo. (p 21)(...) a moleza, os prazeres, o ócio, a indolência alteram nossa alma; as falsas opiniões e os maus hábitos corrompem-na. (p 33)

Sobre o medo
"Tomado de estupor fiquei de cabelos arrepiados e sem voz"(Virgílio). Não sou muito versado no estudo da natureza humana e ignoro o medo como o medo atua em nós. Certo é que se trata de estranho sentimento. Nenhum, afirmam os médicos, nos projeta tão precipitadamente fora do bom senso. E em verdade vi muita gente tornada insensata pelo medo. Mesmo entre os mais assentados, provoca ele terríveis alucinações. (...) O medo põe asas nos nossos pés. (...) O medo é a coisa de que mais tenho medo no mundo. (...) Quantas pessoas, atormentadas pelas fustigações do medo, não se enforcaram, não se afogaram ou se atiraram em precipícios, demonstrando ser o medo mais importuno e insuportável que a própria morte. (p 41/42)

Sobre a morte
"Nunca se deve perder de vista o último dia do homem, nem declarar que alguém é feliz antes de vê-lo morto e reduzido a cinzas" (Ovídio - p 43)"Pensa que cada dia é teu último dia, e aceitarás com gratidão aquele que não mais esperavas." (Horácio - p 47)" ... a primeira hora de vossa vida é uma hora a menos que tereis para viver."(Sêneca - p 49)"... nascer é começar a morrer; o último instante da vida é conseqüência do primeiro." (Manílio - p 49)"O homem nunca pode chegar a prever todos os perigos que o ameaçam a cada instante" (Horácio). Deixo de lado as doenças, as febres, as pleurisias. Quem poderia imaginar que um duque da Bretanha fosse morrer sufocado pela multidão como aconteceu a um deles (...) Não vimos um de nossos reis morrer em folguedo? E não faleceu outro, seu antepassado, da queda de um porco que montava? Ésquilo, advertido de que morreria da queda de uma casa, embora dormisse em campo de trigo, foi esmagado por uma tartaruga caída das garras de uma águia. Houve quem sucumbisse em conseqüência de uma semente de uva engolida; outro, imperador, morreu de uma arranhadura feita com um pente; Emílio Lépido, em virtude de uma topada na porta de sua casa; Aufídio, por ter batido a cabeça no batente da entrada da sala do Conselho. E entre as coxas das mulheres: o pretor Cornélio Galo, Tigelino, comandante da guarda de Roma, Ludovico, filho de Gui de Gonzaga, Marquês de Mântua, e, o que é péssimo exemplo, Spensipo, filósofo platônico." (p 46)

Suicídio
A natureza criou um só meio de entrar na vida, mas cem de sair. Podemos carecer de terras para viver, não faltam para morrer, como diz Boiocatus em sua resposta aos romanos: "Por que te queixas deste mundo? Não te convém? Vives infeliz? Culpa apenas tua covardia. Para morrer basta desejá-lo; a morte está em toda parte, devemo-la à bondade dos deuses; podem tirar a vida de um homem; não lhe podem tirar a morte. Mila caminhos abertos a ela conduzem. (...) A morte voluntária é a mais bela. Nossa vida depende da vontade de outrem; nossa morte, da nossa. Em nenhuma coisa, mais do que nesta, temos liberdade para agir. (...) Houve governos que estabeleceram os casos em que a morte voluntária era justificável e oportuna. Em nosso país mesmo (França), em Marselha, conservava-se outrora à custa do tesouro e sempre à disposição do público um pouco de cicutaparaos que quisessem abreviar seu fim. Não era permitido matar-se sem autorização do magistrado ou sem motivos legais. (...) Conta Plínio queem certa nação hiperbórea o clima é tão ameno que a vida dos habitantes só termina por vontade própria. Cansados de viver, fartos da existência, ao alcançar uma idade avançada, depois de um bom jantar, arrojam-se ao mar do alto de um rochedo destinado a esse uso. (...) Mas quantas objeções a isso! Alguns consideram que não podemos abandonar este mundo em que estamos aquartelados, sem ordem expressa de que nele nos colocou. (...) Platão em suas leis ordena que uma sepultura ignominiosa a quem põe fim à própria vida ou de à de parentes proximos, como um filho, ou ainda, de um amigo, interrompendo assim o curso do destino, sem a tanto ser constrangido pela opinião pública, por algum triste e insuportável acidente da sorte, por uma insuportável vergonha, tendo tido apenas como móvel a covardia ou a fraqueza de um espírito temeroso. (...) Pode-se ainda dizer como esses autores: "... a virtude não consiste em temer a vida mas em nunca fugir dela e enfrentar a adversidade ." (Sêneca) "Na desgraça é não temer a morte; há mais coragem em saber ser infeliz." (Marcial)

Sobre a imaginação
Uma imaginação fortemente preocupada com um acontecimento pode provocá-lo, dizem os clérigos. (...) Não acho estranho que a imaginação dê febre e mesmo provoque a morte nos que não a controlam. (...) Em certos condenados o pavor adianta-se à ação do carrasco, como se viu no caso do condenado a quem desvendaram os olhos no patíbulo a fim de lhe comunicarem ter sido agraciado. Ao lhe tirarem a venda verificaram que já morrera, fulminado pela sua imaginação. (p 51)Assim como a doença de meu corpo se transmite a outro corpo (...) assim também a imaginação pode produzir emanações que atuem sobre outros seres. A antigüidade nos oferece o exemplo das mulheres da Cítia que, indignadas ou irritadas contra alguém, o matavam unicamente com a força do seu olhar. (...) os feiticeiros, dizem-nos providos de olhos insultantes e nocivos, o mau olhado. (...) observa-se o fato de mulheres grávidas imprimirem aos filhos que trazem no ventre a marca de suas fantasias. (...) a Carlos, rei da Boêmia e imperador, foi apresentada uma menina das cercanias de Pisa, peluda e hirsuta, cuja mãe atribuía o fato a uma imagem de São João Batista pendurada junto a seu leito. (...) Viu-se há tempos em minha casa um gato à espreita de um pássaro empoleirado no alto de uma árvore; olharam-se fixamente com intensidade durante alguns momentos e em seguida o pássaro deixou-se cair, como se tivesse morrido, entre as patas do gato, o que se explica pela força do olhar deste ou por efeito da própria imaginação do pássaro. (p 55)Uma mulher, pensando ter engolido um alfinete com o pão, gritava e se atormentava como se sentisse uma dor insuportável na garganta (...) Como não havia inchaço nem qualquer outro sinal externo, uma pessoa sensata julgou se tratasse de um efeito da imaginação por ter a mulher provavelmente se arranhado com a casca do pão. Forçou-a a vomitar e, no que devolveu, jogou às escoidas um alfinete retorcido. Imaginando a vítima que fosse o alfinete engolido, passou-lhe de imediato a dor. (p 55)

O valor das coisas
"O valor das coisas depende de quem as possui: boas para quem sabe utilizá-las, são más para os que as empregam mal. (Terêncio) ... Por isso diz Platão que a saúde, a beleza, a força, as riquezas e tudo o que consideramos felicidade são males para quem tem um juízo errado... (p 123/124)
Amor
Amor demais enjoa, como perturba o estômago um prato agradável comido com exagero. (Ovídio) ... quem não tempo de ter sede, não tem prazer em beber. Nosso desejo cresce com a dificuldade. (...) A dificuldade valoriza as coisas. (...) Nosso apetite despreza o que se acha à sua disposição; corre atrás do que não tem: "desdenha o que está à mão e busca o que não pode ter (Horácio). ... a saciedade engendra o desgosto; não passa então o amor de uma paixão embotada, estupidificada, farta, sonolenta: "Se queres dominar muito tempo o teu amante, despreza suas súplicas" (Ovídio). Fingi-vos de desdenhoso, quem vos se negou ontem virá oferecer-se hoje." (Propércio - p 126/127)

Sexo
Cinquenta divindades presidiam outrora ao ato do amor, e houve um povo entre o qual, a fim de entorpecer a concupiscência dos fiéis, ofereciam-se-lhes raparigas e rapazes para o gozo prévio: porque a incontinência é necessária à observação da continência e o incêncio se apaga com o fogo. Em quase todo o mendo essa parte do corpo foi venerada; em certos países chegavam a cortar-lhe um pedaço para oferecê-lo à divindade ou lhe devotavam o sêmen. Em outra região, os jovens perfuravam o pênis e introduziam entre a pele e a carne bastonetes de madeira, tão grossos e grandes quanto pudessem suportar e que se queimavam em holocausto aos deuses; e os que estremeciam com a dor cruel eram considerados pouco vigorosos e insufucuetmente castos. Alhures a designação do chefe e o respeito que lhe dedicavam ligavam-se às dimensões de seu orgão genital ... (p 392)

Ciúme
É o ciúme, entre as doenças do espírito, a que mais facilmente se alimenta e mais dificilmente se cura. (...) Essa febre deturpa e corrompe tudo o que há de bom e belo nas mulheres. Tudo o que faz uma mulher ciumenta, por honesta e diligente que seja, comporta algo azedo e desagradável; é presa de uma agitação colérica que indispõe os outros contra ela e produz efeito contrário ao esperado. (p 394)

Oráculos
"Nada se ganha em conhecer o futuro; e infeliz é quem se atormenta em vão." (Cícero Apud Montaigne - p 25)"Um Deus avisado escondeu-nos os acontecimentos do futuro sob uma noite espessa, e ri-se do mortal que se inquieta mais do que deve acerca do destino... É senhor de si próprio e passa a existência feliz quem pode dizer diariamente: que importa se amanhã Júpiter escurecer a atmosfera sob nuvens sombrias ou nos der um céu sereno; satisfeitos com o presente, evitemos preocupar-nos com o futuro." (Horácio - p 26)


MONTAIGNE, Michel Eyquem de. [Trad. Sérgio Milliet, consultoria biografica: Marilena de Souza Chauí]. Ensaios – São Paulo: Abril Cultural, 1980

Um comentário:

Anônimo disse...

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