domingo, 17 de fevereiro de 2008

As lágrimas do herói


As lágrimas partiram o coração da torcida. “Não é que não queira mais jogar... mas é que não consigo.” Gustavo Kuerten chorou e fez chorar quem assistiu à primeira etapa de sua turnê de despedida das quadras de tênis. Ao perder logo na estréia do Brasil Open, em Costa do Sauípe, na Bahia, para o argentino Carlos Berlocq – adversário que em outros tempos ele não teria a menor dificuldade para arrasar com seu repertório de jogadas –, Guga protagonizou uma cena que entrou para a História. Guga está fora da luta. As limitações físicas impuseram a aposentadoria ao tricampeão do Aberto da França, em Roland Garros, e número um do ranking mundial por 43 semanas.

A simplicidade de Guga se traduzia na atitude de não se importar com os sacrifícios de uma exigente carreira e na naturalidade com que enfrentava os obstáculos. Seu jeito sempre foi tão cativante que, certa vez, em plena decisão de título no tradicional Buenos Aires Lawn Tennis, a torcida argentina se dividiu entre ele e o tenista local José Acasuso. Em 1997, duas semanas depois da épica conquista do primeiro título de Roland Garros, viajou em um vagão de segunda classe de Nottingham, na Inglaterra, para Wimbledon. A diferença para o confortável vagão de primeira era de 6 libras esterlinas, ou R$ 30. Não era pão-durismo. No trem, ao lado de Guga, sentou-se uma senhora avantajada, que, sonolenta, debruçava-se no campeão entre os solavancos da viagem. Guga nem percebeu. Também dormiu. Ao chegar à estação de Victoria, em Londres, despertou rápido e, ao perceber que uma dor nas costas impedia o autor deste texto de fazer grandes esforços, carregou minhas malas até a calçada.

‘‘Não é que eu não queira jogar mais. Eu peço desculpas, mas é que realmente eu não consigo mais’’.

Numa atitude que caracteriza as grandes personalidades, Guga reconheceu que não fez tudo sozinho. Em Costa do Sauípe, rendeu homenagem ao técnico Larri Passos, que chorava na arquibancada. “Ele é mais gênio do que eu.” A relação com Larri começou quando Guga tinha 13 anos. Alguns meses antes de morrer em plena quadra de tênis – de um infarto quando atuava como juiz –, Aldo Kuerten viajou de Florianópolis a Camboriú e fez um pedido a Larri Passos: transformar o filho desengonçado num grande tenista.

E Guga foi o maior do mundo. Virou o “rei do saibro” por atacar mesmo jogando no fundo de quadra. Com sua esquerda, “desenhava como Picasso”, como certa vez definiu o tenista russo Yevgeny Kafelnikov; com a direita, buscava as linhas, com uma precisão que o tirou de vários “buracos”.

Guga vai se aposentar com uma ponta de inconformismo. Não fossem os problemas no quadril, as duas cirurgias, ele acha que poderia duelar de igual para igual com Rafael Nadal ou com Roger Federer, o número um do mundo a quem derrotou em Roland Garros, em 2004. Guga aprendeu a conviver com as dores, mas não encontrou alternativas para a limitação física: a deficiência na movimentação que o tornou uma presa fácil para Berlocq.

Guga não é de desistir. Disse que vai manter, sem alterações, a turnê de despedida. Seu próximo torneio será em Miami. Depois joga em casa, em Florianópolis, e segue para a charmosa temporada européia de saibro, em Montecarlo, Roma e Hamburgo, até o último adeus em Roland Garros, onde por três vezes foi coroado campeão.

Chiquinho Leite Moreira
Época - Ed. 509 - 02/2008

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