Dos pensadores mais importantes do século XIX, Marx e Freud perderam o brilho. Só Darwin se mantém no topo. Mas já há correções às suas teorias
O século XIX produziu três grandes pensadores que revolucionaram o pensamento humano: Sigmund Freud, o pai da psicanálise, Karl Marx, o teórico do comunismo, e Charles Darwin, autor da teoria da evolução das espécies. Neste início do século XXI, só um deles sobrevive a pleno vigor. O marxismo perdeu sua aura a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim e a subsequente falência dos Estados comunistas. A teoria psicanalítica de Freud, baseada na interpretação do inconsciente, já sofreu inúmeras revisões e, nas duas últimas décadas, foi ofuscada pelo sucesso dos remédios antidepressivos (como, aliás, o próprio Freud previra). Darwin teve outra sorte. Suas teses foram tão amplamente confirmadas no século passado que pareciam inquestionáveis. Não mais. Enquanto se comemoram os 200 anos de seu nascimento (dia 12), a árvore da vida – um conceito central na teoria da evolução – está para cair.
Isso não significa que Darwin vá seguir o caminho de Freud e Marx. Para começar, a revolução que ele provocou tem outra dimensão, comparável apenas ao abalo provocado pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico, em 1543.
Copérnico descobriu que a Terra girava em torno do Sol. Não era, portanto, o centro do Universo. Darwin fez o mesmo com o homem. Ao descobrir que obedecemos às mesmas regras evolutivas dos chimpanzés, das orquídeas, até dos fungos e bactérias, tirou-nos do centro da criação. Essas regras – o mecanismo da seleção natural, revelado com a publicação de A origem das espécies, há 150 anos – não estão em xeque, e só elas já lhe garantem o status de um dos maiores gênios que a humanidade produziu. Onde está, então, o erro de Darwin?
Para Darwin, igual em importância à seleção natural estava o conceito da árvore da vida. E ela está sob forte ataque. O ataque não parte do criacionismo, o movimento que repudia a seleção natural e defende a interpretação literal da origem bíblica do homem. Ele parte de um grande número de cientistas.
A árvore da vida surgiu em 1837. Fazia dez meses que o jovem naturalista Charles Robert Darwin, de 28 anos, retornara de uma viagem de cinco anos pelo mundo a bordo do brigue Beagle, onde reuniu uma enorme coleção de animais, plantas, fósseis e insetos. Era julho. Darwin trabalhava em sua casa quando teve uma faísca. Em uma página de seu caderno de anotações, escreveu: “Eu acho”. Logo abaixo, fez o rascunho da árvore da vida. Foi a primeira vez que usou o conceito da árvore evolucionária para explicar as relações entre as espécies. Darwin percebeu que as dezenas de milhões de espécies que habitam ou habitaram o planeta descenderiam de um antigo Ancestral Universal Comum, que ficaria na base da árvore. Dele desponta um tronco, que se divide e vai criando ramificações. Cada ramo representa uma espécie. Quando ele se bifurca, surgem novas espécies.
“Sob a figura de uma grande árvore (...) os ramos e gomos representam as espécies existentes; os ramos produzidos nos anos precedentes representam a longa sucessão das espécies extintas”, escreveu Darwin, em A origem das espécies. Desde sua publicação, a árvore da vida é o princípio unificador da história da vida. Por 150 anos, biólogos e paleontólogos preenchem sua copa, identificando os seres vivos e extintos de cada ramo. Um exemplo é a linhagem humana. Apesar de o Homem de Neanderthal ter sido achado na Alemanha, em 1856, Darwin levou em conta a semelhança entre homens e chimpanzés para propor, em A descendência do homem (1871), que a origem do Homo sapiens devia estar na África. No século XX, uma dezena de ancestrais do homem foi desenterrada na África. A mais famosa é Lucy, a fêmea da espécie Australopithecus afarensis. Achada na Etiópia, em 1974, Lucy viveu há 3,5 milhões de anos.
É extraordinário que Darwin tenha intuído o mecanismo da seleção natural sem ter a menor ideia de como os pais transmitem aos filhos as características que garantem a sobrevivência de uma espécie. Ele não conheceu as pesquisas genéticas de seu contemporâneo, o monge austríaco Gregor Mendel. Nunca ouviu a palavra gene, criada em 1905, nem sabia do DNA, o responsável pela transmissão genética, descoberto em 1953.
Nos anos 1990, passou a ser possível investigar a evolução no nível dos genes. Aí as coisas se complicaram. A comparação dos genomas do homem com os do chimpanzé mostrou que 98,5% dos genes são idênticos, como seria esperado em duas espécies que se separaram, na árvore da vida, há tão pouco tempo. Mas como explicar a existência de trechos de DNA de cobra no genoma do gado? Bois são mamíferos e cobras répteis. Mamíferos e répteis, descendentes de um mesmo ancestral anfíbio, trilharam caminhos separados há 250 milhões de anos. Outros estudos revelaram anomalias parecidas em plantas, insetos e peixes. Havia algo de podre no reino evolutivo.
Em 1837, Darwin desenhou a árvore da vida (acima). Cada espécie é um ramo que leva a novas espécies. Na linhagem evolutiva do homem está Lucy (abaixo, em reconstrução facial a partir do fóssil achado na Etiópia, em 1974)
No ano passado, uma pesquisa identificou o mesmo trecho de DNA em espécies tão distantes como ratos, morcegos, gambás, lagartos e sapos. Essa distribuição aleatória sugeria que aquela sequência de DNA entrou em cada genoma de forma independente. A única forma de isso ocorrer seria por meio de um agente capaz de saltar de uma espécie para outra, invadindo o DNA do novo hospedeiro. O principal suspeito é o vírus. Mas, se os vírus transferem genes entre espécies de ramos distintos, interligando-os, então a árvore da vida, como imaginada por Darwin, nunca existiu. “A história da vida não pode ser representada como uma árvore”, diz o bioquímico W. Ford Doolittle, da Universidade Dalhousie, no Canadá. “A árvore da vida não é algo que exista na natureza. É um modo de os humanos classificarem a natureza.” Surgiu, então, uma nova representação. A árvore deu lugar a uma teia. A teia da vida. “Dizer que Darwin estava errado é bobagem”, disse a ÉPOCA o paleontólogo americano Niles Eldredge, curador da exposição Darwin, no Museu Americano de História Natural, em Nova York (que percorreu o Brasil entre 2007 e 2008). “Sim, a árvore da vida agora tem a forma de uma teia. E daí? Isso não desmerece a obra de Darwin.”
O erro de Darwin é comparável ao erro de Copérnico. Copérnico acreditava que as órbitas dos planetas em torno do Sol eram círculos perfeitos. Assim como Darwin, ele fez sua descoberta muito antes de haver uma tecnologia apropriada para a observação. Depois que o telescópio foi inventado, o matemático e astrônomo alemão Johannes Kepler descobriu que as órbitas dos planetas são elípticas, não circulares.
Mesmo se a árvore da vida for cortada, a teoria da evolução permanecerá. Teoria é modo de dizer. A seleção natural é uma teoria tanto quanto a eletricidade é uma teoria – um conceito científico que ajuda a entender a realidade e resulta em aplicações práticas. O próximo avanço da ciência não poderá ignorá-la. Terá de incorporá-la, assim como a Teoria da Relatividade de Einstein fez com a física de Sir Isaac Newton. “Nada na biologia faz sentido, a não ser à luz da evolução”, afirma o ucraniano Theodosius Dobzhansky. Nos anos 1930, ele transformou a genética ao cruzar moscas na Universidade Colúmbia, em Nova York – e observar em tempo real a mudança de características de geração para geração.
As correções à teoria darwinista não vão derrubá-la. Mas também não podem ser menosprezadas. Primeiro, o mapeamento dos genomas levou à reclassificação das espécies. Até os anos 1980, as crianças aprendiam que a vida era dividida em dois reinos, o animal e o vegetal. Hoje, são três grandes grupos. Um é formado pelas bactérias. O segundo grupo engloba seres aparentemente tão distantes como protozoários, plantas, fungos e animais. E, finalmente, os Archea, micro-organismos primitivos achados em 1977. Eles habitam as profundezas abissais ou vivem entre as rochas, a 2 quilômetros de profundidade. São as únicas formas de vida que prescindem da luz do sol para sobreviver.
Uma segunda mudança está relacionada aos vírus. Eles sempre ficaram de fora da árvore da vida. Os biólogos nunca souberam onde encaixá-los. Agora, alguns cientistas ousam lhes dar um lugar central na natureza. “Os vírus são a forma de vida mais antiga, mais numerosa e mais abundante do planeta. Eles estão no centro da teia da vida”, disse a ÉPOCA o americano Luiz Villarreal, da Universidade da Califórnia, em Irvine. Segundo Villarreal, os oceanos são habitados por 100 milhões vezes 1 trilhão vezes 1 trilhão de vírus (o número 1 seguido de 32 zeros). São invisíveis, mas se fossem colocados lado a lado formariam uma linha com o diâmetro do Universo. “Ao somarmos os vírus que vivem nos continentes, em bactérias, plantas e animais, vê-se a importância que exercem em todas as formas de vida.”
A onipresença dos vírus e a desfaçatez com que transitam entre as espécies sugerem, segundo Villarreal, que eles formam a maior força evolutiva do planeta. “Os vírus devem ser considerados o principal agente do gênesis no crescimento da árvore da vida”, diz. Ao inocular fragmentos de DNA de uma espécie em outra, o vírus pode alterar o destino evolutivo do novo hospedeiro. Caso o gene introduzido proporcione vantagens adaptativas, a infecção viral resultará, eventualmente, em uma nova espécie. “Os vírus são os criadores invisíveis que mais contribuíram para nos tornar humanos”, diz Villarreal. É uma tese provocadora e está longe de ser consenso. Mas que os vírus têm algum papel na evolução há pouca dúvida hoje. Se voltasse à vida, é provável que o próprio Darwin se engajasse nessa discussão – a mais recente, mas certamente não a última, numa série de debates que começou com a viagem do jovem naturalista inglês pelo mundo.
“Quando eu estava a bordo do Beagle, como naturalista”, escreveu Charles Darwin nas primeiras linhas de A origem das espécies, “fiquei muito impressionado com certos fatos na distribuição dos habitantes da América do Sul... Esses fatos, me parecia, poderiam lançar alguma luz sobre a origem das espécies – aquele mistério dos mistérios.” Impressionado é pouco. Darwin ficou completamente extasiado. Ele foi fisgado pelo encanto da natureza logo no início da viagem, no instante em que pôs os pés no Brasil. O Beagle, brigue de três mastros e seis canhões da Marinha Real, ancorou em Salvador, em 29 de fevereiro de 1832. Foi quando o jovem inglês de 23 anos teve sua primeira visão da exuberante Mata Atlântica. Não estava preparado para o que viu. “O deleite que se experimenta em momentos como esse confunde a mente”, escreveu em seu diário. “Deleite é um termo fraco para expressar a sensação de um naturalista que pela primeira vez vagueia em uma floresta brasileira.” Um mês depois, morando em Botafogo, passou quatro meses explorando o entorno do Rio de Janeiro. “Sentado numa árvore e comendo meu almoço na sublime solidão da floresta, o prazer que experimento é indizível... Se o olhar tenta seguir o voo de uma espalhafatosa borboleta, ele é detido por estranha árvore ou fruta... A mente é um caos do deleite.”
Quando jovem, Darwin (acima) era religioso. Sua mulher, Emma (à esq.), temia que suas teses o levassem ao inferno. Ele só decidiu escrever sua obra depois do desespero provocado pela morte da filha Annie (à dir.)
A passagem de Darwin pelo Brasil foi só o início de uma aventura sensorial e intelectual de cinco anos ao redor da América do Sul. Na Argentina, o deleite deu lugar a uma nova sensação, a dúvida. Em 1833, Darwin ficou intrigado ao ver uma ema (que chamou de pequeno avestruz). Imediatamente, lembrou do avestruz africano. Como explicar a existência de espécies parecidas em continentes tão distantes? Na Patagônia, Darwin coletou fósseis de vários animais extintos. Um deles era blindado e do tamanho de um fusca. Sua semelhança com o tatu dos pampas saltou aos olhos do naturalista. Esse tatu gigante era o gliptodonte, extinto há 10 mil anos. Quando Darwin achou os restos de um camelo extinto, as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar. Aquele animal era muito parecido com o guanaco dos pampas e a lhama andina, apenas muito maior. Estou “tentado a crer que os animais são criados por um tempo definido. O mesmo tipo de relação que o avestruz comum guarda com o (avestruz) pequeno... (une) o guanaco extinto ao recente (...) Se uma espécie se transforma em outra...”
Em 1835, no fim da viagem, Darwin passou algumas semanas nas Ilhas Galápagos, a 1.000 quilômetros da costa do Equador. A fauna do arquipélago impressionou-o. Cada ilha era habitada por uma espécie de jabutis gigantes. Todas eram quase idênticas, à exceção do padrão de desenho de seus cascos. O mesmo acontecia com os iguanas. A espécie de uma ilha árida, por exemplo, se alimentava de cactus. Mas seu litoral abrigava iguanas-marinhos, comedores de algas. A maior diversidade estava nas aves. A única diferença visível entre a dezena de espécies de tentilhão das diversas ilhas era o bico. Alguns eram grossos para quebrar nozes, outros menores para catar sementes. Havia até um tentilhão vampiro que bebia sangue. Darwin ficou perplexo. Ele conhecia o tentilhão do Equador. Seria ele o ancestral comum de todas as espécies das Galápagos? Teriam elas adaptado seus bicos à dieta disponível em cada ilha?
A explicação genial para essas diferenças é a teoria da evolução. Darwin não inventou a evolução. Desde o século XVIII, os naturalistas buscavam uma explicação para a extinção das espécies. Acreditava-se que a Terra tinha 6 mil anos e era criação divina. Ora, se todas as criaturas surgiram no Gênesis e, por definição, a obra divina é perfeita, então por que Deus teria resolvido extinguir os mamutes da Sibéria e as preguiças-gigantes americanas, cujos fósseis eram conhecidos? A extinção das espécies era a questão central da época de Darwin. Desde Jean-Baptiste Lamarck, em 1809, aceitava-se a ideia de que as espécies se transformavam. Lamarck postulou, erroneamente, que as características adquiridas por um indivíduo ao longo da vida eram legadas aos filhos. Assim, pais gordos teriam filhos gordinhos. Darwin revelou que a evolução ocorre num nível muito mais profundo. Os indivíduos não adquirem características vantajosas. Nascem com elas.
A base da seleção natural é a existência da variedade, ou seja, as diferenças entre os indivíduos de uma mesma espécie. Na maioria das vezes, os indivíduos produzem uma grande quantidade de descendentes, mas só uma parte sobrevive até a fase adulta. O salmão, por exemplo, põe milhares de ovas. A maioria é comida, e nascem centenas de peixinhos. Apenas dois ou três atingem a idade da reprodução. Por que só eles? Porque possuem características vantajosas para sobreviver. Pode ser uma facilidade em obter alimento ou o poder de atrair mais parceiros sexuais. Pense nas gazelas africanas. Segundo Darwin, as gazelas são velozes porque têm como ancestral comum uma gazela que era muito ágil. Só ela conseguia fugir dos leões. A maioria das gazelas mais lentas virou refeição, e as mais rápidas tiveram mais filhotes (também rápidos). O mesmo se deu com os felinos. O animal mais veloz em terra é o guepardo. Para alcançar a presa, dispara a 120 quilômetros por hora. Nem as gazelas escapam. Por isso, a seleção natural continua pressionando as gazelas a ser rápidas.
Alfred Russell Wallace (retratado no Arquipélago Malaio) deduziu o mecanismo da evolução de forma independente, o que forçou Darwin a publicar A origem das espécies
No caso das Ilhas Galápagos, um grupo original de tentilhões voou do continente. Aqueles que nasciam com bicos mais grossos e resistentes, mais apropriados a quebrar nozes, conseguiam comer melhor, ficavam mais fortes e procriavam mais em uma ilha onde a principal fonte de alimento eram as nozes. Ao longo de muitas gerações, seus bicos foram ficando cada vez mais grossos. Depois de milhares de anos, surgiu uma nova espécie.
A teoria de Darwin é brilhante, tanto que resiste até hoje. Mas há controvérsias sobre onde foi que ele teve a centelha original. O consenso entre os historiadores da ciência é que não foi nas Galápagos, mas só anos depois. Em julho de 1837, Darwin rascunhou a árvore da vida. A partir desse rascunho, ele mergulhou numa pesquisa sistemática de tudo o que se conhecia à época sobre anatomia comparada, botânica, zoologia e geologia. Em 1838, caiu em suas mãos um exemplar do Ensaio sobre o princípio da população, de 1798. Nele, o inglês Thomas Malthus afirma que a população humana cresce em progressão geométrica, e a produção de alimentos em progressão aritmética. No longo prazo, o saldo desse descompasso seria fome e aumento da mortalidade, reduzindo o tamanho da população à oferta de alimento. Era a peça que faltava a Darwin. A luta pela vida bifurca os galhos da árvore. Espécies mais aptas a sobreviver à fome, à seca ou aos predadores são selecionadas e sobrevivem.
A primeira vez que Darwin falou sobre sua tese foi numa carta ao amigo botânico Joseph Hooker, em 1844. “Desde meu retorno, estou envolvido em um trabalho muito atrevido, sobre o qual não conheço ninguém que não diria se tratar de uma bobagem”, diz Darwin. “Estou quase convencido (bem ao contrário da minha opinião original) que as espécies não são (é como confessar um assassinato) imutáveis... Creio ter achado (aqui está a presunção!) o meio pelo qual espécies se tornam especialmente adaptadas a diversos fins.”
A origem das espécies, aquele mistério dos mistérios, havia sido revelada. Mas se Darwin foi capaz de resolver um mistério tão extraordinário, por que ficou em silêncio? Durante 15 anos, ele discutia a teoria com os amigos mais próximos e com a mulher, Emma, mas não a revelava publicamente.
Para entender a demora em publicar sua teoria, é preciso conhecer os dilemas internos de Darwin. Como todo cavalheiro dos séculos XVIII e XIX que se dedicou à ciência, Darwin era um aristocrata, pertencia a uma família rica. Com 17 anos, seu pai, médico, o enviou para estudar medicina na Universidade de Edimburgo. Ele não suportou os gritos dos doentes. Só gostava das aulas de ciências naturais. Abandonou o curso aos 19 anos. Foi então forçado pelo pai a ingressar no Christ’s College, em Cambridge, o primeiro passo para uma carreira de pastor. Lá, ficou amigo do professor de botânica John Henslow. Também em Cambridge, Darwin devorou o relato de viagem pela América do Sul do prussiano Alexander von Humboldt, o maior naturalista da época. Darwin se apaixonou pela ideia de, ele também, explorar os segredos do Novo Mundo. Sua chance surgiu quando Henslow indicou o aluno para a vaga de naturalista (e companheiro de jantar do capitão Robert FitzRoy) a bordo do Beagle, numa expedição para cartografar o litoral da América do Sul.
No início da viagem, Darwin ainda se considerava temente a Deus. Não se sabe quando suas convicções começaram a fraquejar. No fim da vida, ele se disse agnóstico. Seus questionamentos religiosos podem ter influído para ele se manter calado por anos. As implicações da árvore da vida eram claras. O Homo sapiens era um animal como qualquer outro, e dividia um ancestral comum com o animal mais parecido conosco, o chimpanzé. Só pensar na ideia do homem-macaco fazia a religiosa Emma temer que, quando morressem, ela ascendesse ao paraíso e Darwin fosse direto ao inferno.
Além do custo pessoal de voltar-se contra suas convicções religiosas, Darwin temia as reações da sociedade vitoriana de sua época, religiosa e ultramoralista. Por isso, decidiu recolher a maior quantidade de subsídios possível para sustentar sua hipótese. Devorou tratados agrícolas, conversou com criadores de cães para saber como faziam para selecionar as características desejadas até obter cães de guarda, de caça ou de companhia. Fez o mesmo com os criadores de pombos. Construiu cinco estufas em sua propriedade e mergulhou no cultivo de variedades de orquídeas.
Mesmo com tantos elementos a corroborar suas ideias, Darwin adiava indefinidamente a produção de sua obra. Isso mudou quando Annie, sua filha mais velha (foram ao todo dez filhos), contraiu escarlatina. Em 1851, aos 10 anos, ela morreu. Darwin ficou devastado. “Perdemos a alegria da casa, o consolo da velhice”, escreveu em suas memórias. Há quem localize na perda de Annie a perda da fé por Darwin. Foi quando ele começou a escrever A origem das espécies, planejada para ser um livro introdutório de uma obra muito maior. O livro estava pela metade quando, em julho de 1857, Darwin recebeu uma carta do naturalista Alfred Russell Wallace, que passara anos na Amazônia brasileira e vivia no Arquipélago Malaio (atual Indonésia). Wallace estudava as diferenças entre espécies separadas por grandes rios, como o Amazonas e o Negro, no Brasil, ou espalhadas pelas ilhas do Arquipélago Malaio.
Na carta, Wallace enviou a Darwin um ensaio que estabelecia sua ideia da seleção natural, pedindo avaliação e conselho do naturalista mais experiente. Darwin entrou em pânico. Outra pessoa havia chegado à mesma conclusão que ele, e poderia relegá-lo ao esquecimento. Em 1º de julho de 1858, em sessão da Sociedade Linneana, em Londres, a tese de seleção natural de Darwin foi apresentada à comunidade científica, ao lado do ensaio de Wallace. Darwin não compareceu. Tinha acabado de perder mais um filho. Em novembro de 1859, saiu publicada A origem das espécies. Todos os 1.250 exemplares se esgotaram.
Para não causar ainda mais polêmica, Darwin preferiu não incluir no livro a hipótese da ancestralidade comum de homens e chimpanzés. No entanto, bastava imaginar as consequências do evolucionismo para chegar a essa conclusão. Na Grã-Bretanha, a reação da igreja anglicana à seleção natural foi imediata e devastadora. Darwin entregou sua defesa a Thomas Huxley, conhecido como o “Buldogue de Darwin”. O debate mais famoso foi travado na Universidade de Oxford, entre Huxley e o bispo Samuel Wilberforce, em 1860. Num dado momento, Wilberforce se virou para Huxley e perguntou: “É do lado do seu avô ou do lado da sua avó que o senhor defende descender de um macaco?”. Huxley se levantou. “Caso o senhor me perguntasse se eu preferiria ter um macaco miserável como avô”, disse, “ou um homem altamente educado na ciência e de grandes posses e influência, como o senhor, e que ainda assim emprega estas faculdades com a mera intenção de introduzir o ridículo em uma grave discussão científica, eu não hesitaria em afirmar minha preferência pelo macaco.”
O debate se prolongou por anos, e pelo mundo. “A limitação fundamental da teoria do senhor Darwin brota de sua própria estrutura mental. Ele é apenas um naturalista”, lê-se no The New York Times, em março de 1860.
Em 1871, Darwin tomou coragem e publicou A descendência do homem, em que incluiu o Homo sapiens na árvore da vida, no ramo dos primatas, ao lado de chimpanzés, gorilas e orangotangos. A reação não foi favorável. “A imaginação do senhor Darwin é inesgotável... É surpreendente que um homem da ciência como ele possa dizer que o homem ‘certamente’ descende de um macaco”, lê-se na resenha do The Times, de Londres.
A importância intelectual de Darwin foi reconhecida em vida. Amaldiçoado pela igreja de sua época, mas reverenciado pela ciência, ao morrer, em 1882, ele foi enterrado na Abadia de Westminster ao lado de Sir Isaac Newton.
Peter Moon - Época, N0. 560 - Fevereiro de 2009
http://revistaepoca.globo.com
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