sábado, 7 de fevereiro de 2009

O Diário do Beagle

 Trechos de O Diário do Beagle,
de Charles Darwin

Março, 4

Tradução de Caetano Waldrigues Galindo; Editora UFPR; 526 páginas; 55 reais

Este é o primeiro dia do carnaval, mas Wickham, Sullivan e eu, nada destemidos, estávamos determinados a encarar seus perigos. Esses perigos consistem em ser alvejado sem misericórdia por bolas de cera cheias de água e sair encharcado por grandes seringas de lata. Achamos muito difícil manter nossa dignidade enquanto caminhávamos pelas ruas.

Carlos V disse que aquele que consegue apagar uma vela com os dedos sem hesitar é um bravo; eu digo que bravo é quem consegue andar em um ritmo estável quando baldes d’água de cada um de seus lados estão prontos para serem arremessados sobre ele. Depois de uma caminhada de uma hora através do sacrifício, finalmente chegamos ao campo e lá estávamos bem determinados a permanecer até que estivesse escuro. Assim o fizemos, e tivemos alguma dificuldade em encontrar de novo a estrada, por termos cuidado de costear por fora da cidade.

Para completar nossas ridículas misérias uma chuva pesada nos molhou até os ossos e, por fim, felizmente alcançamos o Beagle.

Era a primeira vez que Wickham saía a terra e ele declarou que, se ficássemos aqui por seis meses, seria a única.

 Março, 12

Desde o dia 6 tenho estado durante a maior parte do tempo em minha rede; meu joelho continuou a inchar e estava extremamente dolorido. Hoje foi o primeiro dia em que fui capaz de me sentar durante algumas horas consecutivas. Foi mortificante ver o claro céu azul sobre minha cabeça e não ser capaz de aproveitá-lo. Ouvi falar de interessantes fatos geológicos e estou incapacitado de examiná-los. Mas, ao invés de resmungar, devo me considerar afortunado por ter visto toda a gloriosa cidade da Bahia. Tivemos algumas festividades a bordo; antes de ontem houve um grandioso jantar no convés de proa. O capitão Paget nos fez inúmeras visitas e é sempre muito divertido; ele mencionou em presença de pessoas que teriam, caso pudessem, contradito suas informações, alguns fatos sobre a escravidão tão revoltantes que, houvesse eu lido a respeito deles na Inglaterra, eu os teria atribuído ao zelo crédulo de gente bem-intencionada. A extensão do comércio realizado; a ferocidade com que é defendido; as respeitáveis (!) pessoas que estão envolvidas nele passam longe de ser exageradas no que lemos. Não tenho dúvidas de que a atual situação da maioria absoluta da população escrava é muito mais feliz do que estaríamos previamente inclinados a crer. O interesse e qualquer bom sentimento que pudesse ter o proprietário acabariam por levar a isso. Mas é totalmente falso (como satisfatoriamente provou o capitão Paget) que nem um deles, mesmo entre os mais bem tratados, quer retornar a seus países. "Se apenas eu pudesse ver meu pai e minhas duas irmãs mais uma vez já ficaria feliz. Nunca consegui esquecê-los." Tal foi a expressão de um dos dessa gente, que é considerada pelos selvagens refinados da Inglaterra como mal sendo sua irmã, mesmo diante dos olhos de Deus. Graças a exemplos que contemplei de pessoas tão cega e obstinadamente preconceituosas, que em outros assuntos eu ouviria, neste eu jamais voltarei a me recusar totalmente a crer: por tudo que eu tenha podido testemunhar, todo indivíduo que tem a glória de se ter esforçado contra o tema da escravidão pode confiar serem dirigidos seus esforços contra desgraças maiores até do que imagina.

Abril, 5

Pela manhã desembarquei com Earl nas escadarias do palácio; caminhamos então pelas ruas, admirando sua aparência alegre e povoada. O plano da cidade é muito regular; as linhas, como as de Edimburgo, correm paralelas, cruzadas por outras em ângulos retos. As ruas principais, que saem das praças, são retas e largas. Graças às cores alegres das casas, ornamentadas por sacadas, às numerosas igrejas e conventos e às multidões apressadas nas ruas, a cidade tem uma aparência que delata a capital comercial da América Meridional. A manhã, para mim, foi muito fértil em planos: com quase toda certeza farei uma expedição de muitas milhas rumo ao interior e, em Botofogo18, Earl e eu encontramos uma casa maravilhosa que nos vai fornecer acomodações excelentes.

Anseio com grande prazer por passar algumas semanas nesse lugar tranqüilo e lindíssimo. O que se pode imaginar de mais delicioso do que observar a natureza em seu maior esplendor nas regiões dos trópicos? Retornamos ao Rio muito animados e comemos em uma Table d’Hote onde encontramos diversos oficiais ingleses servindo sob a bandeira brasileira. Earl revela-se um excelente guia, por ter anteriormente vivido alguns anos nas cercanias.

É uma calamidade o quanto a vida é curta e incerta nestas plagas; às perguntas de Earl sobre os diversos jovens que ele aqui deixou saudáveis e prósperos, a mais freqüente resposta é: ceifados, mortos. As mortes em geral são atribuíveis à bebida: poucos parecem capazes de resistir à tentação, quando exauridos por seu trabalho neste clima quente, de se animarem de maneira vigorosa bebendo álcool.

http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/090507/mapa.html

VEJA, Edição 2007

9 de maio de 2007

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