sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Dom João além das coxinhas

A aclamação de dom João VI como rei, em 1818, no Rio, em pintura de Jean-Baptiste Debret. Visto como bobo, dom João foi o único a ter enganado Napoleão.

Esqueça tudo – ou o pouco – que você sabe sobre o rei de Portugal dom João VI, sua esposa, a princesa Carlota Joaquina, e a mudança da família real portuguesa para o Brasil, em 1808. É difícil, mas deixe de lado a história de que dom João era um glutão incapaz e Carlota uma lasciva viciada em conspirações. Graças às comemorações do bicentenário da chegada da família real e da corte portuguesa ao Brasil, em março do ano que vem, uma série de novos livros dará uma chance, daquelas que surgem a cada 200 anos, de a história se impor à chacota.

Até o segundo semestre de 2008, serão lançadas mais de duas dezenas de trabalhos (alguns deles estão no quadro abaixo) sobre esses personagens e sobre o período joanino, como ficaram conhecidos os anos (1808-1821) em que a corte permaneceu no Rio de Janeiro. “Haverá um reexame menos apaixonado de um período muito discutido e que ainda não foi investigado como deveria ter sido”, afirma o embaixador e historiador Alberto da Costa e Silva, coordenador da Comissão para Comemoração da Chegada da Família Real ao Rio de Janeiro. “Vamos compreender a importância que a transferência da corte teve na formação do Estado brasileiro.”

Príncipe regente desde 1792, dom João decidiu fugir de Portugal com a família e a corte em novembro de 1807 para evitar ser capturado pelo Exército de Napoleão Bonaparte. Chegou em janeiro à Bahia e quase dois meses depois ao Rio, onde foi morar. Durante os 13 anos em que ficou no Brasil, tomou uma série de medidas que ajudou a construir o Estado brasileiro: fez a abertura comercial do país às nações aliadas, liberou a edição de livros, incentivou a música e as artes e criou instituições como o Banco do Brasil. A maioria dos historiadores aponta a construção dessa estrutura como um marco fundamental que ajudaria a manter o país unido após a independência. Ao contrário das nações vizinhas da América Espanhola, o Brasil não se esfacelou no processo de independência. Apesar disso, dom João ficou marcado pela imagem caricatural. Sua imagem é a do filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, no qual aparece como marido traído, carola, preguiçoso e devorador de coxas de galinha.

Na onda de revisionismo histórico do bicentenário, o rei deve ser reabilitado em uma biografia preparada pela historiadora Lúcia Bastos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). De sua pesquisa emerge um rei muito distante do bobalhão. “Dom João não deixou um ministro dominar seu governo e tomou decisões importantes, apesar de ter sido um estadista hesitante em certos momentos”, afirma a autora. “Ele foi uma pessoa de grande importância para o Brasil: sem ele, a independência seria diferente e talvez o país tivesse se esfacelado.” A pesquisa da historiadora mostra que o rei se cercou de intelectuais, formou a Real Biblioteca em Lisboa e, no final da vida, dava sinais de preparar uma transição para tornar Portugal uma monarquia liberal.

Assim como o rei, a imagem de sua mulher, dona Carlota Joaquina, deve mudar. Lançado recentemente, Cartas Inéditas (Casa da Palavra), da historiadora Francisca Nogueira de Azevedo, derruba o mito de que Carlota fosse apenas uma devoradora de homens fixada em dar golpes de Estado para derrubar o marido. Nenhuma das cerca de 1.300 cartas examinadas por Francisca dá qualquer sinal de infidelidade de Carlota. As “conspirações” para derrubar dom João também ganham um contexto mais completo. A imagem negativa de Carlota foi construída provavelmente por terceiros, devido a suas características de personalidade e postura política. “Ela era uma mulher de temperamento forte, preparada intelectualmente e com visão política”, afirma a historiadora. “São comuns cartas em que ela pede livros de política e religião a parentes na Espanha.”

As cartas revelam também dona Carlota como uma mãe zelosa, que informa o marido sobre as doenças dos filhos e, quando necessário, dá uns tapas neles. Por ironia, o único sinal de infidelidade conjugal foi encontrado não em Carlota, mas em dom João: ele teria tido uma filha fora do casamento com dona Eugênia de Menezes, uma dama de dona Carlota. O sinal mais claro é que o soberano garantiu para mãe e filha uma pensão até o fim da vida.

Do conjunto de livros sobre a mudança, um dos mais bem-sucedidos é 1808 (Planeta), do jornalista Laurentino Gomes. Campeão de vendas, é uma obra para ser lida como uma grande reportagem. Ao contrário de outros jornalistas que se aventuram no ramo – e se dão mal –, Gomes não só leu os livros necessários como se preocupou em pesquisar. Afirma no prefácio do livro ter lido documentos oficiais em bibliotecas no Brasil e no exterior durante os últimos dez anos. O próprio autor ressalta que o resultado não tem a densidade da obra de um historiador de ofício. Seu principal mérito é mostrar ao público leigo que dom João não foi o rei babão. Quando chegou ao Brasil, em 1808, ele governava Portugal e seu vasto império ultramarino – decadente e militarmente fraco. Portugal era um país vulnerável, espremido pela guerra entre a Inglaterra, maior potência do mundo, e a França, no auge da expansão de Napoleão. Dom João tinha a opção de se render ao francês e ser aniquilado pelos ingleses; ou ficar ao lado dos aliados ingleses e ser destruído pelo francês. Escolheu uma alternativa ousada: abandonar o país e transferir a corte e toda a alma do governo português para o Brasil. Nas aparências, uma atitude covarde. Na realidade, dom João foi o único a não ter perdido o reino para Napoleão. Um resultado que contradiz o folclore sobre ele. Duzentos anos depois, ficou mais fácil reconhecer isso.


Dicionário do Brasil Joanino, Ronaldo Vainfas e Lúcia Bastos, José Olympio
Dividido em verbetes, trata de temas e personagens históricos de 1808 a 1821, período em que dom João VI permaneceu no Brasil.

A música no tempo de D. João, Vasco Mariz, Casa da Palavra
O autor trata de compositores e músicas da época de dom João, um conhecido amante de música sacra.

Saúde pública nos tempos de D. João, Senac Rio
Escrito pelo cirurgião da corte e pelo médico do infante Dom Pedro, traz dois estudos encomendados por dom João para conhecer a situação da saúde no Rio de Janeiro.

O jardim de D. João, Rosa Nepomuceno, Casa da Palavra
O livro conta a fundação do Jardim Botânico do Rio e como ele foi usado para o tráfico de plantas para o Brasil, prática muito comum na época.

Viagem de D. João ao Brasil, Thomas O’ Neill, José Olympio
Relato da viagem da família real para o Brasil, escrito por um tenente irlandês que estava em uma das embarcações da esquadra.

A transferência da capital e Corte para o Brasil-1807-1808, Kenneth Light, Tribuna da História
Baseado nos diários de bordo da esquadra, Light arrisca até novos números – mais conservadores – sobre o tamanho da corte que teria aportado no Brasil.

Leandro Loyola
Época, Ed. 501 - Dez. 2007

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