O arauto da arte abstrata
Wassily Kandinsky poderia ter sido apenas um obscuro professor de direito na velha Rússia czarista, se não houvesse decidido, certa manhã, conferir uma exposição de pintores impressionistas franceses em Moscou. A visão de um monte de feno, pintado por Monet, provocou nele um entusiasmo incomum.
Numa época em que os críticos mais tradicionais torciam o nariz e consideravam os quadros impressionistas meros borrões de tinta sobre a tela, Kandinsky ficou deslumbrado. Segundo ele próprio contaria mais tarde, foi ali que percebeu, pela primeira vez, que a obra de arte não precisava se resumir a imitar a natureza. Estava plantada a semente da arte abstrata, forma de expressão que teria em Kandinsky um pioneiro e um de seus mais ardorosos teóricos.
Nascido em Moscou, em 4 de dezembro do ano de 1866, Kandinsky não abraçou o abstracionismo da noite para o dia. Foi necessário todo um processo de evolução pictórica, até alcançar gradativamente a completa abolição da figura em sua obra.
Ainda sob o efeito da exposição impressionista, decidiu recusar o cargo de assistente na faculdade de direito em uma universidade russa e, em 1896, aos 30 anos, mudou-se para Munique, na Alemanha, com o firme propósito de dedicar-se ao estudo da arte. Antes de partir, casou com uma prima, Anya Ticheyeva, que levou junto com ele.
Mas as aulas ministradas pelos professores na Alemanha, ainda presos ao realismo e ao academicismo, não o satisfizeram. Aproximou-se então de artistas mais jovens, como Paul Klee, e passou a desenvolver sua própria teoria estética, pregando a libertação da arte da reprodução subserviente da natureza.
Seus primeiros quadros europeus, é verdade, ainda mostravam nítidas influências impressionistas. Exibiam figuras humanas, objetos naturais e evocavam elementos da arte popular russa. Aos poucos, porém, os contornos se fizeram mais imprecisos, os rostos perderam definição e, cada vez mais, as formas tornaram-se apenas vagas referências de algo existente no mundo real. "Enquanto a arte não dispensar o objeto, ela será meramente descritiva", sentenciou Kandinsky.
Casado pela segunda vez, com uma artista alemã, Gabriele Muenter, Kandinsky decidiu voltar à Rússia em 1914. Três anos depois, em 1917, trocou Gabriele por uma jovem russa, Nina von Andreyewsky, com quem ficará até o fim da vida. Naquele mesmo ano, eclodiu a revolução socialista, liderada por Lênin. Respeitado pelos intelectuais revolucionários, o artista foi convidado a fazer parte do Comissariado para a Educação e a dar aulas em academias estatais, mantidas pelo novo regime.
Mas a pintura de Wassily Kandinsky era abertamente incompatível com o "realismo socialista", estilo imposto aos artistas russos após a Revolução. Classificado pelos ideólogos soviéticos como um representante da "arte burguesa e decadente", Kandinsky viu-se obrigado a deixar novamente o seu país natal, retornando em 1921 à Alemanha, onde assumiu o cargo de professor da Bauhaus, famosa e inovadora escola de arquitetura e artes aplicadas.
Em 1933, com a chegada de Hitler ao poder, a alemã Bauhaus foi fechada. Kandinsky, que já fora criticado e defenestrado pelos soviéticos, passou a ser rotulado pelos nazistas como um "cancro da bolchevização da arte". Não lhe restava outra alternativa a não ser providenciar uma nova e imediata transferência, agora para Paris.
Sete anos mais tarde, quando os nazistas invadiram a França, Wassily Kandinsky estava velho demais para empreender mais outra mudança. Septuagenário, cuidou de diminuir o ritmo de sua produção e passou a viver de forma discreta e reservada.
Kandinsky morreu no dia 13 de dezembro de 1944, aos 78 anos. Passado o obscurantismo nazista, seu nome foi aclamado, na Alemanha e em toda a Europa, como o mestre que inaugurou o abstracionismo, uma das maiores revoluções de todos os tempos na história da arte.
Curiosidades
De cabeça para baixo
Kandinsky costumava dizer que passou a compreender de forma mais decisiva o poder da arte abstrata quando, certa noite, ao entrar em seu ateliê, não conseguiu reconhecer um de seus próprios trabalhos, que estava de cabeça para baixo.
Coisa de louco
As primeiras reações da crítica à obra abstracionista de Kandinsky foi de absoluta surpresa e rejeição. Muitos consideraram que aquele amontoado de linhas, cores e formas sem significado era obra de um doido varrido. Ou, na melhor das hipóteses, de alguém que manejara tintas e pincéis sob os efeitos de algum alucinógeno, como o haxixe.
Teoria e prática
Kandinsky, além de artista, era também um teórico. Escreveu alguns livros para defender suas idéias a respeito do abstracionismo. Entre suas obras principais destacam-se "Do Espiritual na Arte", publicado em 1912, e "Ponto e Linha sobre o Plano", editado na forma de apostila pela Bauhaus.
Cidadão do mundo
Kandinsky mudou de nacionalidade duas vezes. Inicialmente, após deixar a Rússia e fixar-se em Munique, solicitou cidadania alemã. Mais tarde, com a ascensão dos nazistas ao poder, refugiou-se em Paris e, mais uma vez, trocou oficialmente de nacionalidade, tornando-se cidadão francês.
Ao lado de Freud e Einstein
O abstracionismo de Kandinsky representou uma ruptura tão radical em relação à arte figurativa tradicional que, hoje, muitos críticos e historiadores da cultura costumam colocá-lo em um honroso panteão de grandes pensadores e cientistas da história da humanidade: ele estaria, para a pintura, no mesmo grau de importância que Freud tem para a psicologia e Einstein para a física.
Contexto histórico
O abstracionismo, inaugurado por Kandinsky por volta de 1910, tem como pressuposto básico a realização de uma arte independente do mundo externo e da realidade visível, ou seja, uma obra composta apenas por elementos puros, como as formas, as linhas e as cores. Também chamado de "arte abstrata", este movimento se desenvolveu em várias vertentes, até passar a ser o traço predominante de toda a produção artística realizada ao longo do século 20.
Os abstracionistas radicalizaram uma tendência típica das principais vanguardas artísticas do final do século 19 e início do século 20. Desde a invenção da fotografia, o impressionismo havia buscado novas formas de representar o mundo, distanciando-se da mera reprodução "fiel" e "imutável" dos objetos. Os impressionistas procuravam captar as impressões visuais provocadas por estes mesmos objetos em determinado momento, impressões fugidias, que poderiam variar de acordo com a luz, por exemplo. Com a eliminação dos contornos, o impressionismo produziu pinturas em que a luminosidade – e não as pessoas ou as coisas – era o principal tema do quadro.
Os pós-impressionistas e expressionistas, por sua vez, libertaram a cor e a linha de suas funções meramente representativas, exagerando propositalmente as formas, para expressar a prevalência da emoção do artista sobre o mundo real. Os cubistas, a seu modo, também romperam com a idéia da arte como imitação da natureza, ao abandonar as noções tradicionais de perspectiva e volume, retratando os objetos de vários pontos de vista simultâneos, decompostos em figuras geométricas.
Mas, a todos esses e outros movimentos que procuravam um distanciamento e uma releitura do chamado "mundo objetivo", o abstracionismo contrapôs uma recusa radical a qualquer espécie de representação. Em outras palavras, não se tratava mais de ver os objetos do mundo com novos olhos, mas de criar um universo à parte, uma realidade autônoma, criada pelo próprio artista. Era isso o que Kandinsky queria dizer com uma de suas frases mais célebres: "Criar uma obra de arte é criar um mundo".
http://www.artcyclopedia.com/artists/kandinsky_wassily.html
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