A vitória do “não” na Venezuela assanhou os setores antidemocráticos e autoritários aqui do Brasil. Muitos tentaram demonstrar que a derrota de Chávez era a prova de que seus críticos são injustos: a Venezuela seria uma democracia pujante, em que o presidente submete suas idéias ao povo e acata os resultados, tudo muito normal. A vitória do “não” foi sem dúvida uma vitória dos democratas venezuelanos, mas, nem de longe, a evidência de que o regime em vigor naquele país é democrático. O que se evitou ali foi mais um golpe na democracia, o definitivo sem dúvida, mas, para que a liberdade volte a ser uma realidade, o caminho ainda é longo. Já se tornou um chavão, mas é inevitável repetilo: eleições são fundamentais numa democracia, mas, por si só, não atestam que um regime seja democrático.
Depois de eleito em 1998, Chávez, por decreto, decidiu fazer uma consulta popular para que o povo aceitasse ou não a convocação de uma Constituinte, que teria por objetivo implantar a “revolução pacífica bolivariana”. O Congresso, eleito apenas um mês antes (portanto, perfeitamente legítimo), decidiu resistir, alegando que o presidente não tinha o poder de fazer tal consulta. Mas a Suprema Corte do país, para agradar a Chávez, não somente autorizou o plebiscito como deu ao presidente o direito de ditar as regras eleitorais para a eleição dos constituintes. O que fez Chávez? Pra aquela eleição, acabou com o voto proporcional e instituiu o voto majoritário, em que o vencedor de um distrito leva todos os votos. E mais: nas cédulas eleitorais, proibiu a menção a partidos, mas apenas ao nome ou ao número dos candidatos. Assim, os partidários de Chávez tiveram 55% dos votos, mas, dado o sistema majoritário, obtiveram 92% dos assentos na Constituinte. Se o voto proporcional tivesse sido mantido, seus oponentes teriam ficado com 45% das cadeiras e não com apenas 7%.
A Constituinte nasceu com esse vício de origem, o que não a impediu de promover uma escalada autoritária: decretou a extinção do Congresso e procedeu a um expurgo no Judiciário, com mais de um terço dos juízes sendo demitidos sumariamente, sem direito a defesa. O atual Congresso, unicameral, tem 100% de partidários de Chávez, já que a oposição, em protesto contra leis eleitorais que a prejudicavam, boicotou as eleições.
Não é à toa que, em janeiro deste ano, os deputados foram unânimes ao aprovar uma excrescência: deram a Chávez, pela segunda vez desde 1998, o poder de governar por decretos por um ano e meio, a contar de fevereiro.
O Judiciário é outra calamidade. Logo depois da Constituinte, 20 juízes foram indicados para a Suprema Corte, todos, de início, simpáticos ao presidente. Com o tempo, a corte se dividiu, o que levou Chávez a aprovar uma nova lei para o Judiciário, aumentando para 32 o número de juízes, eleitos, por maioria simples, para um mandato de 12 anos. Ou seja, de uma só vez, Chávez poderia indicar juízes em número suficiente para voltar a ter uma maioria folgada. Mas não foi só: a nova lei dava ao Congresso a possibilidade de afastar qualquer juiz que cuja conduta fira a majestade do cargo ou solape o bom funcionamento da Justiça, seja lá o que essas duas coisas venham a significar. Com essa espada sobre suas cabeças, como falar em independência dos juízes? Num ambiente como este, a Venezuela precisará ainda de muitas vitórias dos democratas para que possamos considerar o país uma democracia.
Situação muito diversa da nossa, ainda bem. Aqui, Executivo, Legislativo e Judiciário são realmente autônomos, independentes e se contrabalançam. As provas disto têm sido oferecidas de modo contínuo pelos três poderes. E pelo nosso povo também. Mais e mais fica claro que a democracia é um valor de que não se quer, em nenhuma hipótese, abrir mão. A última pesquisa Datafolha é um belo exemplo de como estamos maduros: o apoio ao presidente Lula continua na estratosfera, mas a possibilidade de um terceiro mandato foi plenamente rejeitada em todas as regiões e em todas as faixas de renda e de escolaridade (uma maioria nunca menor do que 58%). O resultado dessa pesquisa talvez seja suficiente para que o PT siga de fato a palavra do presidente e pare de namorar essa idéia. Somos de fato e de direito uma democracia, e isso é reconfortante. O que não impede de ainda vivermos, aqui e ali, episódios que, apesar de menores, devem merecer o repúdio de todos nós. Por exemplo, a censura à propaganda do livro “Lula é minha anta”, de Diogo Mainardi, um jornalista competente, cuja importância pode ser medida pelos ataques que recebe. A propaganda foi banida das telas que exibem vídeos e informações em nossos aeroportos. A empresa responsável pelo serviço alegou que a Infraero proíbe a veiculação de propaganda política, o que é ofensivo, porque o livro não é propaganda partidária, mas simplesmente jornalismo de opinião, em que, ao lado da revelação de fatos, o autor emite juízos sobre eles, o que é absolutamente legítimo, porque feito com transparência. No livro, Mainardi faz a crônica do escândalo do mensalão, reunindo num volume os artigos que publicou com grande repercussão na revista “Veja”. Pode-se gostar ou não dele, mas jamais censurá-lo.
Como o próprio Mainardi disse, a decisão pode ter sido excesso de zelo de algum funcionário de quinto escalão.
Mas que episódios assim ainda se repitam é sinal de que temos de estar sempre vigilantes.
Ali Kamel, jornalista e sociólogo.
Diretor-executivo de jornalismo do Globo
Depois de eleito em 1998, Chávez, por decreto, decidiu fazer uma consulta popular para que o povo aceitasse ou não a convocação de uma Constituinte, que teria por objetivo implantar a “revolução pacífica bolivariana”. O Congresso, eleito apenas um mês antes (portanto, perfeitamente legítimo), decidiu resistir, alegando que o presidente não tinha o poder de fazer tal consulta. Mas a Suprema Corte do país, para agradar a Chávez, não somente autorizou o plebiscito como deu ao presidente o direito de ditar as regras eleitorais para a eleição dos constituintes. O que fez Chávez? Pra aquela eleição, acabou com o voto proporcional e instituiu o voto majoritário, em que o vencedor de um distrito leva todos os votos. E mais: nas cédulas eleitorais, proibiu a menção a partidos, mas apenas ao nome ou ao número dos candidatos. Assim, os partidários de Chávez tiveram 55% dos votos, mas, dado o sistema majoritário, obtiveram 92% dos assentos na Constituinte. Se o voto proporcional tivesse sido mantido, seus oponentes teriam ficado com 45% das cadeiras e não com apenas 7%.
A Constituinte nasceu com esse vício de origem, o que não a impediu de promover uma escalada autoritária: decretou a extinção do Congresso e procedeu a um expurgo no Judiciário, com mais de um terço dos juízes sendo demitidos sumariamente, sem direito a defesa. O atual Congresso, unicameral, tem 100% de partidários de Chávez, já que a oposição, em protesto contra leis eleitorais que a prejudicavam, boicotou as eleições.
Não é à toa que, em janeiro deste ano, os deputados foram unânimes ao aprovar uma excrescência: deram a Chávez, pela segunda vez desde 1998, o poder de governar por decretos por um ano e meio, a contar de fevereiro.
O Judiciário é outra calamidade. Logo depois da Constituinte, 20 juízes foram indicados para a Suprema Corte, todos, de início, simpáticos ao presidente. Com o tempo, a corte se dividiu, o que levou Chávez a aprovar uma nova lei para o Judiciário, aumentando para 32 o número de juízes, eleitos, por maioria simples, para um mandato de 12 anos. Ou seja, de uma só vez, Chávez poderia indicar juízes em número suficiente para voltar a ter uma maioria folgada. Mas não foi só: a nova lei dava ao Congresso a possibilidade de afastar qualquer juiz que cuja conduta fira a majestade do cargo ou solape o bom funcionamento da Justiça, seja lá o que essas duas coisas venham a significar. Com essa espada sobre suas cabeças, como falar em independência dos juízes? Num ambiente como este, a Venezuela precisará ainda de muitas vitórias dos democratas para que possamos considerar o país uma democracia.
Situação muito diversa da nossa, ainda bem. Aqui, Executivo, Legislativo e Judiciário são realmente autônomos, independentes e se contrabalançam. As provas disto têm sido oferecidas de modo contínuo pelos três poderes. E pelo nosso povo também. Mais e mais fica claro que a democracia é um valor de que não se quer, em nenhuma hipótese, abrir mão. A última pesquisa Datafolha é um belo exemplo de como estamos maduros: o apoio ao presidente Lula continua na estratosfera, mas a possibilidade de um terceiro mandato foi plenamente rejeitada em todas as regiões e em todas as faixas de renda e de escolaridade (uma maioria nunca menor do que 58%). O resultado dessa pesquisa talvez seja suficiente para que o PT siga de fato a palavra do presidente e pare de namorar essa idéia. Somos de fato e de direito uma democracia, e isso é reconfortante. O que não impede de ainda vivermos, aqui e ali, episódios que, apesar de menores, devem merecer o repúdio de todos nós. Por exemplo, a censura à propaganda do livro “Lula é minha anta”, de Diogo Mainardi, um jornalista competente, cuja importância pode ser medida pelos ataques que recebe. A propaganda foi banida das telas que exibem vídeos e informações em nossos aeroportos. A empresa responsável pelo serviço alegou que a Infraero proíbe a veiculação de propaganda política, o que é ofensivo, porque o livro não é propaganda partidária, mas simplesmente jornalismo de opinião, em que, ao lado da revelação de fatos, o autor emite juízos sobre eles, o que é absolutamente legítimo, porque feito com transparência. No livro, Mainardi faz a crônica do escândalo do mensalão, reunindo num volume os artigos que publicou com grande repercussão na revista “Veja”. Pode-se gostar ou não dele, mas jamais censurá-lo.
Como o próprio Mainardi disse, a decisão pode ter sido excesso de zelo de algum funcionário de quinto escalão.
Mas que episódios assim ainda se repitam é sinal de que temos de estar sempre vigilantes.
Ali Kamel, jornalista e sociólogo.
Diretor-executivo de jornalismo do Globo
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