domingo, 16 de dezembro de 2007

Todos os quadros de Debret


Catálogo revela pinturas desconhecidas, cassa as credenciais de telas famosas e põe ordem no acervodo grande cronista da vida carioca no século XIX

O pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi o artista que melhor e mais fartamente documentou o ambiente urbano e a vida cotidiana do Rio de Janeiro antes da invenção da fotografia. Alguns especialistas chegam a considerar que esse lado documental é o aspecto mais importante de sua obra. Mas seu valor artístico é inegável, razão pela qual uma de suas aquarelas pode custar até 100 000 reais. Um óleo pode chegar a 700 000 reais. Por isso, é de esperar certo alvoroço nesta semana com o lançamento do catálogo raisonné do autor (Editora Capivara; 708 páginas; 195 reais). O livro, de Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, é resultado de dez anos de pesquisa. Uma comissão formada pelos autores e por quatro outros especialistas na obra de Debret sistematizou e classificou todo o trabalho conhecido do artista, que soma pouco mais de 1 000 obras. Do levantamento, fazem parte 200 esboços e aquarelas nunca publicados e cinco quadros a óleo cujos donos não sabiam tratar-se de obras de Debret e que agora terão seu preço valorizado em alguns milhares de reais. Descobriu-se também que 87 obras atribuídas a ele são falsas ou de autoria duvidosa. Quarenta delas pertencem ao Museu Castro Maya, no Rio, que tem a maior coleção de obras do artista. Mas existem quadros erroneamente atribuídos ao pintor no Instituto Moreira Salles, no Museu Histórico Nacional, no Museu Imperial de Petrópolis e no Masp.

Debret chegou ao Brasil em 1816, integrando a Missão Artística Francesa, e morou no país por quinze anos. Nesse período, pintou quadros sob encomenda para a corte e, por conta própria, retratou cenas do cotidiano brasileiro, na época praticamente desconhecido dos europeus. Essas imagens deram origem ao livro de gravuras Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado em três volumes entre 1834 e 1839. Para cada gravura que aparece ali, Debret fez esboços e aquarelas preliminares que eram verdadeiras obras de arte. Hoje elas são consideradas seu principal trabalho. Em 1831, quando retornou à Europa, o pintor levou-as consigo. Um século depois, boa parte delas voltou ao Brasil por meio de colecionadores. O mais importante foi Raymundo de Castro Maya, empresário bem-sucedido e mecenas que tinha grande influência sobre a intelectualidade brasileira. Entre 1939 e 1940, ele comprou 551 aquarelas e desenhos, numa aquisição que aumentou o interesse nacional pelo pintor.

Suas obras foram exaustivamente publicadas em catálogos, páginas de jornais e livros didáticos. O que se descobriu agora confirma suspeitas de que alguns dos quadros que se atribuíam a ele são falsificações. O negociador que intermediou o contato entre Castro Maya e a família de Debret, um franco-brasileiro chamado Roberto Heymann, decidiu engrossar a coleção. Sua equipe fabricava aquarelas com a assinatura do pintor a partir de gravuras do livro. O resultado é que quase 10% do acervo de Castro Maya são falsificações, o que desvaloriza sua coleção em aproximadamente 4 milhões de reais. Depois disso, Heymann empurrou outros "originais" para famílias abastadas no Brasil. O catálogo traz todas elas, além de obras sem assinatura que foram atribuídas a Debret, mas eram do seu contemporâneo Charles Landseer. Entre elas estão doze aquarelas, hoje pertencentes ao Instituto Moreira Salles, que foram adquiridas em 1999, como o filé mignon de um lote de quadros que custou o equivalente hoje a quase 3 milhões de reais.

A popularidade de Debret supera a de outros artistas da mesma época, como Rugendas e Taunay. Os brasileiros estão habituados com os desenhos do pintor em livros de história, embora poucos saibam associá-los ao seu nome. No mercado de artes, entretanto, sua obra é rara. A maior parte está concentrada em três grandes coleções, e quase nunca aparecem novos quadros em leilão. O catálogo raisonné vai permitir, pela primeira vez, um passeio completo por seu trabalho.

Marcelo Bortoloti
VEJA - Edição 2039, dez. 2007

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