quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O triunfo de uma nação

Na noite em que Franklin D. Roosevelt obteve colossal vitória sobre o adversário republicano Herbert Hoover, em meio à Grande Depressão que engolia os Estados Unidos em 1932, o 32º presidente eleito fez uma confidência rara ao mais velho de seus 6 filhos: — Ao longo da minha vida, eu tive medo de apenas uma coisa, Jimmy: de incêndio.

(Roosevelt tinha os membros inferiores paralisados e vivia numa cadeira de rodas). Mas hoje acho que sinto medo de algo mais.

— De quê, pai? — Medo de talvez não ter a força necessária para dar conta da tarefa.

Como se sabe, Roosevelt deu conta, e o país se reencontrou como nação para encarar a Segunda Guerra mundial.

Na madrugada de anteontem, perante uma América de todas as raças que se sentia dona de sua própria História, o 44º presidente eleito Barack Hussein Obama festejou: — Esta vitória em si não basta para trazer a mudança que buscamos — ela é apenas o meio… Talvez leve um ano, talvez mais do que um só mandato….

Mas nunca me senti mais esperançoso do que esta noite de que chegaremos lá.
Surpreendentemente, seu tom não era exultante. Era sóbrio e comedido.

Já para a multidão que acompanhava o discurso no Grant Park de Chicago com expressão de alumbramento, tudo, por um instante, pareceu possível — inclusive Obama sair dali caminhando sobre as águas.

Nessa jornada dos Estados Unidos ao encontro de sua História, o país escolheu ser conduzido por um homem cujo sobrenome (Obama), como já foi apontado, lembra o de um terrorista do Oriente Médio; e o nome do meio (Hussein) evoca o do ditador derrubado; e cujo prenome (Barack) rima com Iraque. Difícil inventar algo mais esdrúxulo para o paladar americano.

Mas é esse filho de mãe sulista branca e pai negro queniano, criado no Havaí por avó materna e deslocado para a Indonésia islâmica na juventude — tudo isso antes de procurar sua negritude na periferia de Chicago e se formar em Direito por Harvard — que acaba de receber do rapper Jay-Z a saudação definitiva: — Rosa Parks tomou assento para que Martin Luther King pudesse marchar. Martin Luther King marchou para que Obama pudesse correr. E Obama correu para que pudéssemos voar. O novo presidente é um brother.

A eleição de Obama vem tão carregada de simbolismos que cada um pendura nela o que quiser. Ela tem um efeito cascata que ultrapassa o universo do negro e sua “liberdade de voar”.
Também o menino hispânico, a imigrante asiática, ou qualquer cidadão que não nasceu anglo-saxão mas tem na América o chão em que pisa todos os dias haverá de lembrar-se do dia em que Barack Obama foi eleito.

Obama expandiu a noção de pátria

A força por trás da vitória do candidato democrata pouco tem a ver com suas propostas políticas, posições ideológicas ou qualificação específica para o cargo de comandante-emchefe da nação mais poderosa do mundo. O que ele tem a oferecer, por enquanto, é o poder da imagem, o impacto de sua figura como retrato oficial dos Estados Unidos da América.

Para os povos que viveram as últimas décadas com motivos para demonizar o colosso americano, a troca do olhar furtivo de George W. Bush pelos traços mais universais de Barack Obama é tudo, menos cosmética. Ao contrário de seus antecessores, cujo lugar na História dependeu dos rumos que imprimiram a seus mandatos, Obama já garantiu sua cadeira cativa antes mesmo de ser empossado: pelo simples fato de ter sido eleito, ele já redefiniu o que é ser americano. Expandiu a noção de pertencimento, de cidadania, de pátria e de nação. Ou melhor, foram os eleitores que viram nele a possibilidade de redesenhar essas fronteiras.

De resto, a persona política do senador do Illinois continua engenhosamente indecifrável, e, portanto, sem arestas definidas, como lhe convém.

Para a geração que se perdeu entre a Guerra do Vietnã e o colapso de Wall Street essa indefinição vem a calhar, pois permite comparar o fenômeno eleitoral Barack Obama ao rastilho de voluntariado nacional desencadeado por John F. Kennedy em 1960.

Semelhanças com Kennedy

À primeira vista, nada a ver, pois o jovem senador de Massachusetts (40 anos incompletos, quando disputou a Casa Branca) já nascera milionário, caucasiano, era filho de patriarca em cujas veias corria poder. Mas ambos não passavam de calouros na política e disputaram a indicação partidária com senadores escaldados — Lyndon Johnson e Hubert Humphrey, no caso de Kennedy; Hillary Clinton no caso de Obama. Ambos, formados por Harvard, irromperam no cenário nacional de forma inesperada, tomando a palavra numa convenção partidária.

E Kennedy nascera católico, o que, para a América de 50 anos atrás, parecia impedimento político semelhante, senão maior, do que ser negro na América de hoje (à época, a hipótese de algum dia vir a existir um candidato negro sequer era aventada).

Nenhum dos dois se notabilizou por oferecer ao eleitor um plano de governo detalhado nem posições claras sobre questões pontuais de época.

Mas ambos perseguiram com teimosia uma visão de esperança na vida e confiança na capacidade de julgamento do eleitor. Ted Sorensen, conselheiro e braço-direito de JFK por 11 anos, conta que Lyndon Johnson ficou tão desconcertado com as adesões que Kennedy arrebanhava por onde passava que instruiu um assessor a espionar a campanha do adversário: “Descubra qual é o segredo dele, sua estratégia, suas fraquezas”.

Não adiantou. Só Kennedy tinha intuído que a nação americana aspirava por mudança.
Era um desejo vago, difícil de ser computado, uma vez que o presidente em exercício , Dwight Eisenhower, era um dos mais populares desde Franklin D. Roosevelt. Mas a intuição era certa.
Na eleição de 2008, a aspiração de mudança esteve escancarada o tempo todo, ao alcance de qualquer candidato.

Apenas um, Barack Hussein Obama, teve a audácia de convidar a nação a derrubar a sua fronteira mais enraizada. Pode ser uma jornada rumo ao desconhecido.

Mas ela não tem volta. A isso pode se chamar fazer História.

Dorrit Harazim
O Globo

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