domingo, 2 de dezembro de 2007

Direito e avesso

Parece que a política nacional entrou de novo na zona cinzenta onde todos os gatos são pardos e se lê o direito pelo avesso. No horizonte nublado da política, não só aqui, mas no resto da América Latina, brotam "idéias novas". A que vem com mais força é uma releitura truncada da teoria e da prática da democracia, a qual esta residiria apenas na regra de ouro de ouvir e obedecer à vox populi. Democrático seria o regime que consulta o povo, faz plebiscitos. Se for da vontade da maioria, um presidente se transforma em tirano e palmas para ele.

Vivemos hoje a democracia em sociedades de massa, compostas por indivíduos frouxamente ligados a instituições como partidos e sindicatos, mas interconectados pelos modernos meios de comunicação. Ninguém imagina que nessas condições a democracia se restrinja à eleição de candidatos enquadrados em partidos. Ela sempre foi muito mais do que isso. Sempre supôs a igualdade perante a lei, o respeito aos direitos da pessoa humana e à voz das minorias, e regras para a alternância do poder. Tudo isso deve ser mantido, juntamente com a difusão das informações e a conseqüente possibilidade de o cidadão opinar ativamente no processo decisório. Nada contra, portanto, que se consulte diretamente o povo sobre questões definidas, desde que haja debate prévio e livre para que as opiniões se formem. Nem, muito menos, que se ampliem os canais de participação popular no processo deliberativo. Quando, entretanto, se criam condições para transformar as consultas em formalidades manipuladas pelo peso da presença governamental na mídia ou pelo uso dos benefícios governamentais para provocar a adesão ao líder, só lendo o direito pelo avesso se pode falar em democracia.

E isso está ocorrendo, mesmo entre nós. Na recente convenção do PSDB, exortei o presidente Lula a ser explícito na rejeição ao terceiro mandato. Fiquei contente ao vê-lo dizer, na edição de O Globo de domingo passado, que "resiste" ao terceiro mandato. Ao dizer que resiste, sugere que há quem queira. Em seguida, a nuvem: o deputado Devanir Ribeiro, diz Lula, não propôs terceiro mandato, propôs "apenas" que o presidente possa convocar plebiscitos. Ora, se a Constituição veda esta faculdade ao presidente, é exatamente para não abrir espaço ao governo autocrático com manipulação da vontade popular. É por isso que qualquer consulta popular deve, primeiro, ser aprovada pelo Congresso, limitando o poder pessoal.

Pena o presidente não ter parado na primeira afirmação. Ao continuar a argumentação, não se limitou a passar a mão na cabeça do autor da manobra continuísta. Depois de haver justificado as mudanças na Constituição da Venezuela com o argumento de que é contra a ingerência na soberania de cada país, entrou em contradição: acusou-me de haver defendido o terceiro mandato de... Fujimori! Não defendi nada, presidente Lula. Apenas segui o princípio de não-ingerência, que o senhor defende, e os conselhos do embaixador em Lima (seu ex-ministro da Defesa que hoje o representa, e bem, na Espanha). Achei conveniente não estimular uma conspiração externa e confiar que o povo do Peru se livraria do tiranete por meios próprios.

Seguir princípios de política externa quando se está na Presidência não exclui o dever de atuar para salvaguardar os direitos humanos ou os princípios democráticos em outros países, como estabelecem respectivamente a Constituição e a cláusula democrática inserida nos acordos do Mercosul. Foi o que fiz, em abril de 2002, quando determinei ao chanceler Celso Lafer que interviesse firmemente para repudiar o golpe contra o presidente Hugo Chávez, logo depois do reconhecimento do governo usurpador pelos americanos. Mas esses princípios vedam ao presidente de um país imiscuir-se em política eleitoral de outro. Como fez o presidente Lula ao manifestar-se publicamente em favor da eleição de Evo Morales.

Se Chávez vier a obter apoio para a reforma da Constituição - o que espero ardentemente não aconteça - e vier a ser eleito pela terceira vez, que espaço haverá para o governo do Brasil interferir? Nenhum, salvo se a Venezuela vier a ser incorporada ao Mercosul e as restrições às liberdades lá prosseguirem, quando, então, ela poderá sofrer sanções e mesmo ser desligada do bloco, com base na cláusula democrática.

É isso que me preocupa: o sofismar contínuo do presidente, deixando o País sem saber tratar-se de astúcia, no que creio, ou de desinformação. Em outro exemplo da mesma natureza ele justifica a eleição indefinida com uma falácia: toma o que é regra no sistema parlamentarista - a permanência reiterada do primeiro-ministro na chefia do governo - e com ela justifica o que é anomalia no sistema presidencialista. Ou então dá uma cambalhota mental e usa a exceção, o impeachment, para dizer que, no presidencialismo, da mesma maneira que no parlamentarismo, há regra para a limitação dos mandatos, mesmo que em tese eles sejam indeterminados.

Como estamos em época de ler o direito pelo avesso, vem o complemento: qualquer objeção que se faça à conduta ou às palavras do presidente provoca logo uma reação despropositada, como se fosse um ato de lesa-majestade ou tentativa de desestabilização política. Cobrar dele respeito a quem trabalha e estuda, e por isso se projeta, vira "preconceito da elite" e crítica velada aos que não tiveram oportunidades para se educar melhor. Nesse passo, mostrar que sua conceituação de democracia é precária pode virar prova de apego elitista aos limites da "democracia burguesa". Assim, de sofisma em sofisma, transforma-se a oposição em conservadora e o atraso em progresso.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República.

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