Quando se acaba de ler a biografia de D. Pedro II - Ser ou não Ser, de José Murilo de Carvalho, o primeiro pensamento que nos ocorre é de como teria sido sua vida se não tivesse nascido imperador do Brasil. Não que d. Pedro não tivesse qualidades para governar. Depois de quase 50 anos de reinado, como bem resume o autor, ele foi para o exílio “deixando consolidada a unidade do País, abolidos o tráfico e a escravidão e estabelecidas as bases do sistema representativo”.
Mas d. Pedro II era um homem de qualidades medianas. Na vida real teria sido um bom e honrado pai de família, um prosaico funcionário público, freqüentador de rodas literárias, amante das belas letras, mas sem nenhum talento para elas. Seu texto era correto mas sem brilho, sua poesia era deplorável, suas idéias eram sensatas mas não exatamente ousadas. Sua vida pessoal foi das mais tediosas, passou-a quase toda cercado de poucos amigos verdadeiros, em um lar triste e pouco confortável, com uma esposa sem encantos que não escolhera. Seu único consolo eram os livros e as filhas. As amigas que teve, amores platônicos em sua maioria, cultivou-as, na maior parte do tempo, por meio de cartas. O longo diário que deixou supera o de Vargas na extensão e na sensaboricesse. São os diários de dois homens minuciosos e permanentemente ocupados com a burocracia, atentos a ela, sabedores que eram dos perigos da má administração.
Talvez fossem essas características pessoais, aliadas a um excelente caráter, a uma total honestidade e a uma natureza bondosa que tenham feito de d. Pedro II o homem mais bem talhado para ser o imperador do Brasil. Pois ele foi, sem dúvida, um bom governante e isto talvez tenha se devido exatamente às suas qualidades medianas: à falta de ambição e do gosto pela pompa necessariamente associada à posição que ocupava e à ausência dos sonhos de glória e de fama que impulsionaram seu pai.
Características que lhe faziam ver o lugar de imperador como “uma cruz que carrego por dever”. Orientava sua vida por um estrito sentido de cumprimento de suas obrigações e por valores de humanidade. Em seu diário escreveu que amava sobretudo, nesta seqüência: a Deus, à humanidade, à Pátria, à família e, só por último, aos indivíduos. A humanidade vinha antes da Pátria.Como imperador, d. Pedro II foi, antes de mais nada, um funcionário público exemplar que se dedicava quase exclusivamente ao serviço da nação. Como chefe de Estado, foi hábil para conservar todas as prerrogativas que lhe garantiam a constituição de 1824, agindo sempre dentro da lei. Que lhe era favorável. Herdara do avô a capacidade de se cercar de homens valiosos e de chamá-los e dispensá-los quando conviesse. Fez disso mesmo a base da estabilidade de seu reinado. Não é à toa que os grandes momentos de sua biografia coincidem com os grandes momentos da história brasileira na segunda metade do século 19.
O livro de José Murilo nos proporciona uma análise minuciosa dos atos e pensamentos de d. Pedro II sobre a questão escravocrata. Certamente, todo o esforço do imperador no sentido de fazer com que fossem aprovadas as leis do fim do tráfico, do ventre livre e dos sexagenários, enfrentando um parlamento em que tanto liberais como conservadores defendiam a escravidão, muito honram a sua memória. Ao lado disso, a permanente defesa da liberdade de imprensa - mesmo quando esta era usada contra ele e sua família, o que aconteceu muitas vezes - e seu trabalho incansável para tornar mais democráticas e funcionais as instituições representativas brasileiras bastam para erguê-lo acima dos brasileiros de seu tempo. Sua ação firme na Guerra do Paraguai, determinado que estava a deter o ditador que atacara e insultara seu país, proporcionou-lhe alguns dos poucos momentos de aclamação popular de seu reinado.
Em sua viagem aos EUA, a simplicidade de suas maneiras encantaram os americanos e ele recebeu do povo e da elite daquele país as homenagens que poucas vezes recebeu em seu próprio país. Não se podia querer mal a um imperador que se vestia com modéstia, conversava com o mesmo interesse com todas as pessoas e que distinguia e valorizava o talento e a inteligência. Como diz o autor, era apenas nas viagens internacionais que ele podia se dar ao luxo de ser apenas Pedro de Alcântara, um homem simples que amava as belas letras e a ciência e que gostava de visitar lugares novos, de assistir a conferências, aulas e espetáculos como um espectador comum. A maneira quase ascética como vivia na intimidade comprova seu desprendimento dos bens materiais.
D. Pedro II não enriqueceu no trono. Ao contrário, empobreceu.É interessante comparar o seu destino, a maneira como ficou aqui no Brasil, criança pequena, com suas três irmãs também meninas e sem nenhum outro parente por perto, com o do filho de Maria Antonieta, o delfim, corrompido e massacrado pelos revolucionários. O nosso menino não teve amor de mãe, nem exemplo de pai para seguir, mas foi bem cuidado, bem-educado e se tornou um adulto cujos valores dizem bem dos que foram responsáveis por sua formação. Pelo menos em seus primeiros anos de vida, a pátria foi uma mãe gentil para o menino que, mesmo de longe, nunca deixou de amá-la e compreendê-la.
Isabel Lustosa
Historiadora da Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro)
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