segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Literatura e Estado

Quase desde o seu berço, por assim dizer, a literatura russa padeceu sobre a sombra do poder do Estado, da autocracia do czar. Puchkin, considerado seu fundador, já desde jovem poeta conheceu as desditas do desterro por ter composto uma Ode a Liberdade! em 1820. O czar Nicolau I dito o Czar de Ferro, depois de um encontro que teve com o poeta em 1830, somente tolerou seus poemas desde que suas estrofes fossem previamente censuradas pelo autocrata em pessoa.

Em geral, as edições de literatura, e de qualquer outra coisa impressa, seja lá qual fosse, passaram a ser objeto do crivo do Santo Sínodo, uma espécie de polícia teológico-política da Igreja Ortodoxa, um braço religioso e ideológico do Czarado, que aprovava, censurava ou simplesmente proibia a edição. Tão imensa era aquela presença que Dostoiévski reservou-lhe um capítulo especial no seu romance "Os Irmãos Karamazóvi", de 1866, dedicado a terrível figura do Grande Inquisidor, figura todo-poderosa que, inclusive, sentiu-se no direito, num diálogo franco com o Salvador, de impedir a Segunda Advinda dele a Terra.

Tal onipresença da censura obrigou os literatos russos a realizar infindáveis acrobacias e a recorrer a inúmeros simbolismos, quase que crípticos, para poder elidir os olhos sempre atentos e intrometidos do Grande Inquisidor que parecia eterno e que nunca dava trégua a ninguém. Mesmo assim, obras-primas das letras russas consagraram-se internacionalmente. Livros como "Pais e Filhos" de Ivan Turgueniev, "Almas Mortas" de Gogol, "Crime e Castigo" de Dostoievski ou "Guerra e Paz" do conde Leon Tolstoi, ombreando-se com autores ocidentais, lançaram as artes da escrita deles no panteão da grande literatura mundial.

Literatura e Revolução

Nos primeiros anos da Revolução de 1917, os escritores russos embriagaram-se com a liberdade inicialmente conquistada. Foi o momento de explosão do Movimento Futurista encabeçado por Vladimir Maiakovski e Velimir Khlebnikov, com sua proposta de "destruição da sintaxe" e celebração histérica dos avanços tecnológicos ao tempo em que exaltava o "Tempo Presente" como essencial à criação artística. Evidentemente que baniam do seu cenário literário os autores do passado como Gogol, Dostoiévski ou Tolstoi.

Todavia a lua-de-mel entre o modernismo artístico e o bolchevismo, cujo avalista foi o comissário da educação Anatoly Lunacharsky, falecido em 1933, que se arrastou pela década dos anos vinte, encerrou-se com a ascensão e consolidação definitiva do grupo stalinista ao poder.

Em 1934, o regime adotou como a "linha correta" a ser seguida pelos artistas soviéticos o chamado Realismo Socialista, termo extraído de um artigo da Gazeta Literária, aparecido em maio de 1932 e difundido no ano seguinte por Máximo Gorki (transformado então no escritor oficial do stalinismo vitorioso). Esta doutrina, aclamada no Primeiro Congresso Pan-soviético dos Escritores, realizado em Moscou, em 1934, defendeu a necessidade de forjar-se uma arte verdadeiramente proletária, um estilo comunista escrito numa prosa simples e cujos enredos não deviam ser rebuscados ou complicados, muito menos terminar de modo trágico ou infeliz.

"As massas demandam" dizia o artigo da Gazeta, "por uma honestidade artística, verdadeira, e uma revolucionária, socialista e realista, representação da revolução proletária".

A literatura, como as demais expressões da sensibilidade estética humana, devia-se colocar a serviço da grande causa - a construção do socialismo na União Soviética, enaltecendo preferencialmente o esforço do secretário-geral, o camarada Joseph Stalin no erguimento da grande potência do proletariado mundial.

Diferentemente do Czarismo, que afinal apenas exigia que os homens de letras não escrevessem contra o regime, a ditadura stalinista, não satisfeita com uma possível omissão dos escritores e poetas, cobrou a adesão completa e total deles ao regime, forçando a que todo o campo artístico nada mais fosse senão do que um prolongamento do Comissariado da Educação do regime.
A ditadura que se estendia sobre a União Soviética inteira, tinha seu desdobramento na tirania que o comissário Andrei Zhdanov, homem de confiança de Stalin designado para o setor, passou a exercer o papel do outrora Grande Inquisidor sobre os literatos e artistas do país. Reprovou ele nos escritores soviéticos a ausência de um verdadeiro Partiynost, de não terem "espírito e partido" ao lançarem-se nas suas criações e enredos.

Os dois rios da literatura russa

Por assim dizer, dois rios da literatura correm sobrepostos um ao outro. Um deles é um rio de planície, dos grandes descortinos, dos horizontes largos e amplos, que se abre para os acontecimentos históricos da Rússia. Este é o rio em que o grande barqueiro foi Leon Tolstoi com sua obra grandiosa (Guerra e Paz e Ana Karenina). O outro é um rio subterrâneo, sinuoso, de águas ocultas, que corre por veios fechados aos olhos humanos, que trata das coisas profundas, das doidices secretas das paixões inconfessas dos homens e das mulheres (Crime e Castigo, Os Possessos, Os Irmãos Karamazóvi).

Estes dois nomes, Tolstoi e Dostoievski, um originado no patriciado o outro na pequena nobreza russa, foram os titãs das letras russas e provavelmente ainda servirão como tipos-exemplares de tudo o que ainda se escreverá no presente e no futuro naquela língua. Pois Alexander Soljenitsin, como se estivesse atravessando uma passagem fluvial caudalosa, afirmando-se num apoio ou noutro, tratou de alcançar os cumes da alta literatura sendo por vezes Tolstoi e em outras Dostoievski.

Quando denunciou a vida nos campos de prisioneiros ("Um dia na vida de Ivan Denisóvich", no sombrio conto "A Mão Direita", nos romances "Pavilhão dos Cancerosos" e "O Primeiro Círculo"), o fez como se fora discípulo de Dostoievski. Ao enveredar para o romance histórico ("Agosto de 1914" e "Novembro de 1916") imaginou-se seguindo as pegadas do velho Tolstoi. No registro das suas memórias ("O Carvalho e o Bezerro", de 1967) um tanto que lembrou o "Diário de um Escritor" de Dostoievski, ao assumir o papel de profeta eslavo, voltou a incorporar o Tolstoi dos seus últimos anos, o patriarca retirado, auto-exilado na sua propriedade, cobrando atitudes e compromissos éticos dos russos e dos ocidentais.

Soljenitsin, no seguir dos anos, revelou-se um seguidor da tradição eslavófila, aquela que acreditava que qualquer aproximação com a cultura ocidental corroia a pureza dos sentimentos dos russos em geral. Viu no bolchevismo uma cega importação ideológica trazida por Lenin da Europa Ocidental ("Lenin em Zurique") que redundou numa grande infelicidade do povo, que foi enquadrado a golpes de força no leito de Procusto do comunismo marxista. Stalin, por sua vez, seria uma versão moderna, impiedosa e mais sangrenta, da política de ocidentalização posta em prática por Pedro o Grande.

Voltaire Schilling

Nenhum comentário:

 
Locations of visitors to this page