A abertura da Olimpíada de Pequim ficará na história tanto pelo seu simbolismo como pelo seu caráter espetacular. Foi a melhor festa já realizada por uma cidade-sede dos Jogos.
Na vida de um país, há certos momentos que são de refundação. Eles tanto podem indicar um novo rumo como celebrar uma ruptura já feita. A abertura da Olimpíada de Pequim, na sexta-feira, foi um desses momentos. Na inauguração dos Jogos – e também do Ninho de Pássaro, o estádio que enche de beleza os olhos dos estrangeiros e de orgulho os habitantes da capital da nação –, a China da prosperidade festejou o grande salto empreendido desde o início dos anos 90, quando seus dirigentes finalmente despejaram, numa lata de lixo não reciclável, a herança maldita de Mao Tsé-tung. Os chineses permanecem sob uma ditadura? Sim. Pequim insiste em cortar o oxigênio dos monges tibetanos? Sim. A pobreza no meio rural é extrema? Sim. O massacre na Praça da Paz Celestial é incancelável? Sim. Esses problemas nodoaram a festa de abertura da Olimpíada? Não. Os mais de 90000 cidadãos ali presentes – num entusiasmo que perpassava qual corrente elétrica os atores, os dançarinos, os músicos e a platéia – mostraram aos turistas, aos jornalistas, a dezenas de chefes de estado e de governo e a estimados 4 bilhões de telespectadores ao redor do mundo que formam uma nação orgulhosa de seu passado, satisfeita com seu presente e otimista com seu futuro. É este o paradoxo: há quase duas décadas os chineses, mesmo quando erram e se recusam a admitir os erros, seguem no caminho certo. Talvez porque se trate de um povo com urgência de felicidade.
Não apenas pelo simbolismo, a festa de abertura da Olimpíada de Pequim foi a mais fantástica já realizada por uma cidade-sede dos Jogos. Dirigida pelo cineasta Zhang Yimou, o Spielberg chinês, ela reuniu espetáculo e tecnologia com um bom gosto difícil de ver em manifestações desse tipo – a exceção ficou por conta do número musical com um piano de cauda branco, quem sabe uma concessão à recente loucura nacional por pianos de cauda de qualquer coloração (há até em aeroportos). Para compor uma espécie de ópera da alma da China – temperada por referências a invenções fundamentais, como o papel, a impressora que antecedeu a de Gutenberg, a pólvora e a seda –, Yimou se valeu da caligrafia dos ideogramas, da coreografia das lutas marciais, do teatro e, numa escala até sutil para a dimensão do personagem, de Confúcio (551-479 a.C.), o educador e filósofo cujos ensinamentos, concretizados em ditados e aforismos, ainda influenciam o modo de viver e de pensar dos habitantes do país. Confucionista foi a maneira com que Yimou deu as boas-vindas a todos. A frase "Friends have come from afar, how happy we are" ("Amigos vieram de longe, como estamos contentes"), declamada assim, na rima em inglês, por 2008 dançarinos ao som de uma percussão poderosa, é um ditado famoso do mestre de dois milênios e meio atrás.
Como os chineses apreciam luzes, e bem coloridas, o que é facilmente constatável por forasteiros, a comemoração foi feérica. O público se extasiou com tambores que se acendiam ao rufarem, roupas que fulguravam como árvores de Natal, um papiro digital sobre o qual se projetavam textos e pinturas chinesas célebres e um globo terrestre que, com 18 metros de diâmetro, parecia um gigantesco abajur giratório, desses que se vêem em quartos infantis. E, obviamente, com os fogos de artifício, outra invenção chinesa. Eles não se restringiram ao grand finale, mas pontuaram as apresentações. Foram soltos de mais de 1000 pontos instalados no estádio e fora dele, o que deu oportunidade para que parte dos habitantes de Pequim usufruísse de seu brilho.
Na tribuna de honra, sentados quase lado a lado, o presidente americano George W. Bush, com um binóculo a tiracolo, e o primeiro-ministro russo Vladimir Putin estavam como que mesmerizados. Uma pena que o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tenha se retirado mais cedo. Ele perdeu o sensacional acendimento da pira que domina o Ninho de Pássaro. Içado por meio de cabos finíssimos, iguais aos usados pelos acrobatas do Cirque du Soleil, o atleta veterano honrado com a tarefa passeou, em plano inclinado, pelo anel interno da cobertura do estádio, enquanto eram projetadas imagens da passagem do fogo olímpico por diversos países. Era como se ele andasse em câmera lenta. Foi o único instante, nos últimos vinte anos, que um chinês desacelerou. Ilusão de ótica.
Mario Sabino, de Pequim
VEJA - Edição 2073
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