Se há um elemento de moral e certeza política que cimenta o consenso liberal mais que qualquer outro é a visão complacente segundo a qual, enquanto o Iraque é “uma guerra de escolha”, o Afeganistão é uma guerra necessária. No mês passado, quando os jihadistas começaram a bater em retirada do Iraque em direção ao Afeganistão e ao Paquistão, muitos comentaristas afirmaram ser a prova de que os Estados Unidos não deveriam ter desperdiçado suas forças no Iraque.
Essa visão simplista ignora os seguintes pontos:
1. Muitas lideranças da Al Qaeda – notavelmente o assustador Abu Musab al-Zarqawi, já condenado e executado – foram para o Iraque depois de desalojados à força do Afeganistão.
2. A presença americana no Afeganistão não é “unilateral”; é endossada pela Otan e pelos aliados das Nações Unidas. O comandante das forças antitalebans normalmente nem sequer é americano. Mesmo assim, estão ocorrendo mais perdas americanas no Afeganistão que no Iraque.
3. Muitos dos ataques mais bem-sucedidos contra o Taleban foram conduzidos por forças americanas remanejadas a partir do Iraque. Essas vitórias militares são o resultado de táticas de contra-insurgência e estratégias que foram aprendidas no Iraque e aplicadas triunfalmente no Afeganistão.
Em outras palavras, qualquer tentativa de jogar uma guerra contra a outra é inútil. A maioria das pessoas já parece não acreditar que Saddam Hussein tivesse armas de destruição de massa ou que seu governo patrocinasse o terrorismo. Eu discordo, mas vamos imaginar que o regime iraquiano tenha apenas blefado com essa combinação de ameaças. Chegaríamos ao limite de afirmar que a aliança ocidental não poderia confrontar tais ameaças até ter o Afeganistão sob controle?
Também é conveniente aceitar que o problema no Afeganistão seja apenas de falta de tropas. Essa não é a visão do governo afegão nem das forças da Otan em terra. A insolência do Taleban e de seus aliados da Al Qaeda tem uma única explicação. Esses terroristas teocráticos contam com um partidário de confiança no escalão mais alto do Estado paquistanês, o que inclui seu complexo militar. Enquanto esse relacionamento persistir, um estoque regular de braços e recrutas estará garantido.
A questão que se coloca para o senador Barack Obama e quem o apóia é a seguinte: esse problema seria resolvido com a retirada das tropas americanas do Iraque? No ano passado, o senador Obama falou com entusiasmo da possibilidade de seguir o Taleban no território paquistanês. Ultimamente, não temos ouvido afirmações assim. Ele disse apenas por dizer ou acredita que os EUA têm tropas suficientes para ocupar três países? Estaria trocando o Iraque pelo Paquistão? Ao menos sabemos com certeza que o Paquistão tem armas nucleares adquiridas principalmente por pirataria – e que é o anfitrião e patrono do Taleban e da Al Qaeda.
Outra consideração se impõe. Se é verdadeiro, como afirmou a manchete de primeira página do New York Times, que os “EUA avaliam abandonar o Iraque como passo positivo” e “mais tropas podem ser liberadas para operações no Afeganistão”, só pode ser porque, no Iraque, a Al Qaeda foi submetida a uma derrota no campo de batalha – uma derrota militar acompanhada por uma humilhação política em que os fanáticos foram repudiados por aqueles em nome dos quais reivindicavam estar lutando. Se tivéssemos deixado o Iraque de acordo com a agenda do movimento antiguerra, a situação seria precisamente a oposta: os iraquianos seriam agora penosamente tiranizados pelo prazer sádico da Al Qaeda, que poderia vangloriar-se de infligir uma derrota aos Estados Unidos no front.
Ouso dizer que a notícia dessa derrota teria se espalhado suficientemente rápido pelo Afeganistão e por outros lugares onde o inimigo opera. Leve isso em conta da próxima vez em que você ouvir aquela conversa mole sobre “a caça ao inimigo real” ou qualquer outro resmungo que sugira que nós só podemos combater nossos inimigos em um lugar de cada vez.
Christopher Hitchens, escritor, colunista da revista Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA
Época, Edição 532 - 28 de Julho de 2008
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