Para alguns, para os gregos antigos, por exemplo, o talento e a paixão por escrever eram um dom alcançado por influência das musas, figuras divinas que pairavam nos ares, mas que eram sovinas em emprestar seus favores miraculosos aos que amavam a literatura e acreditavam saber narrar ou compor. Para outros, em tempos bem posteriores, os que viveram no estados-totais do século 20, a paixão pelas letras podia representar o desastre, a cadeia quando não a morte. Este foi o destino de muitos escritores russos no século 19 e também dos seus sucessores que viveram na época soviética, os quais viram-se constrangidos a realizar verdadeiros exercícios de acrobacia ao entregarem-se às letras.
Sob a proteção de Puchkin
Num dia qualquer do ano de 1961, um até então anônimo escritor soviético, como se fora um crente em relação ao seu santo favorito, colocou-se embaixo da estátua do poeta Alexander Puchkin, o fundador da literatura russa, existente em Moscou como que a lhe pedir proteção especial.
Chamava-se Alexander Soljenitsin e, ainda naquela ocasião, tinha 43 anos, sendo que desde 1945 sua vida virara num inferno. Uma infeliz passagem de uma carta que enviara a um amigo caíra sob os atentos olhos da policia política soviética, a KGB, o que lhe rendeu, mesmo tendo sido condecorado por bravura na guerra, oito anos de condenação nos campos de concentração do regime comunista.
Posto em liberdade em 1957, seu temor desta feita era outro. Ele fora convidado a vir a Moscou para ser entrevistado pela redação do famoso jornal cultural Novy Myr, por ninguém menos do que Andrei Tvardosky, um dos expoentes da poesia e da prosa soviética daquela época, e por igual candidato ao Comitê Central do PCURSS. E a razão da convocação era discutir o manuscrito que um amigo dele, servindo de intermediário, fizera chegar ao famoso e prestigiado diretor. A narrativa era uma bomba. O texto, seis folhas escritas dos dois lados em letra miúda e sem nenhuma margem, unia em si uma impressionante capacidade dramática a uma perigosa denúncia política.
Célebre da noite para o dia
O tema centrava-se na vida de um zek, mais exatamente um dia qualquer de um prisioneiro político do regime stalinista, cuja letra e número era Cht-854. Tvardosky quando pôs os olhos nos manuscritos não mais os deixou. De uma nada, sabe-se lá vindo da onde, quem escrevera aquela novela era um fenômeno.
Logo ele sentiu que a literatura russa produzira um novo e grande nome. Por isso chamou Soljenitsin. Queria, sem comprometer-se em definitivo, acertar os detalhes de uma possível publicação daquela comovente história, arrasadora para com o stalinismo. A primeira providência foi mudar-lhe o título. Chamou-o de "Um dia na vida de Ivan Denisóvich". Aquela coragem toda de Tvardovsky em publicar um desconhecido, quase que recém saído das catacumbas do sistema prisional soviético, devia-se a que ele próprio já havia se lançado em ousadias. Naquele ano de 1961 ele recebera o prêmio Lênin pela história que escrevera, um texto intitulado Za Daliu-Dal (Distância ao lado da distância), que tratava da viagem de volta através da Sibéria de um ex-prisioneiro de Stalin (a tese de Tvardovsky era que o stalinismo era um desvio cruel do leninismo e não sua continuidade como o regime enfatizava).
Desde logo houve imediata afinidade entre ele, o escritor de grande nomeada e com livre trânsito junto ao oficialismo, com aquele outro João-ninguém, vindo dos lados obscuros e sombrios da Rússia Soviética.
Publicado no ano de 1962, com o beneplácito especial do novo chefe do regime Nikita Krushev, o realista relato sobre a vida de Ivan Denisóvich (um alter ego do autor) tornou Alexander Soljenitsin um autor famoso da noite para o dia. Quase de imediato viu-se traduzido no Ocidente.
O novo autor teve a felicidade de aparecer bem em meio às idas e vindas da política de desestalinização decretada pela nova direção da URSS. Krushev viu naquelas linhas de um ex-condenado uma maneira de distanciar-se ainda mais das práticas repressivas adotadas pela administração anterior dos tempos de Stalin e de Béria, o chefe da polícia política, a KGB.
Era desejo dele dar uma face mais humanizada ao comunismo soviético que ele considerava conscurpado pela terrível política de perseguições desencadeada pelo seu antecessor, o todo-poderoso secretário-geral Joseph Stalin (1924-1953).
Soljenitsin, todavia, estrela brilhante no cenário cinzento da literatura soviética, logo se viu alvo das atenções da polícia política, instituição que, ainda que reformada desde a liquidação de Béria, em 1953, estava longe de aceitar a redução da sua autoridade inquisitorial e profanatória. Espias, a gente sombria que vestia capotes escuros, deram para vigiar o seu apartamento.
Renovavam assim aqueles policiais a secular luta travada na sociedade russa entre o Estado e a Literatura, a Opressão e a Liberdade, confronto que na verdade jamais saiu da pauta das relações entre governantes e governados daquela imensa nação.
Voltaire Schilling
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