domingo, 25 de janeiro de 2009

História de David dá aula de evolução humana

David, o macho demoníaco

David

Juntar na mesma frase as palavras “Bíblia” e “evolução” pode parecer provocação pura para muita gente. Já que vai soar provocativo mesmo, melhor chutar o balde de vez: que tal “a Bíblia prova que a evolução é verdadeira”? O fato é que a vida sexual de um certo rei David, se olhada com a ajuda das lentes corretas, equivale a uma aula de biologia evolutiva humana em forma literária, daquelas de fazer inveja a mestres do gênero, como Richard Dawkins ou Steven Pinker. Nada mal para um texto escrito por um israelita anônimo há mais de 2.600 anos.

A ideia, proposta por Eric A. Eliason, etnógrafo da Universidade Brigham Young (Estados Unidos), não tem nada de sacrílega, pelo menos intencionalmente. Eliason não quer provar nem desprovar a chamada inspiração divina do texto bíblico, mas simplesmente analisá-lo como obra literária – e ninguém pode negar que a Bíblia é um dos monumentos literários mais importantes do Ocidente, mano a mano com obras como a Ilíada e a Odisséia, do grego Homero. Por que esses clássicos se tornaram tão reverenciados? No caso da Bíblia, parte da resposta é óbvia: trata-se de um texto sagrado, objeto da fé de bilhões de pessoas ainda hoje. Mas mesmo pessoas sem nenhuma inclinação religiosa frequentemente admitem que os autores bíblicos apresentam diversos insights reveladores sobre a natureza do ser humano – o que nos leva de volta ao tema da evolução da nossa espécie.

Eliason define sua análise da vida sexual de David como um exemplo de “darwinismo literário”, um estilo de análise que vem ganhando cada vez mais adeptos entre os pesquisadores que querem unir biologia e literatura. O raciocínio é simples: embora a literatura seja um produto cultural, que varia enormemente de sociedade para sociedade mundo afora, ela também é uma característica universal da nossa espécie. Não existe grupo humano, por mais isolado e empobrecido que seja, sem alguma forma de poesia, canção épica ou narrativa.

Isso pode indicar que temas, histórias e personagens comuns à literatura de muitas culturas lançam luz sobre como o comportamento universal da nossa espécie foi forjado por pressões evolutivas básicas, como obter sucesso na reprodução e alcançar um posto elevado na hierarquia do grupo. Invertendo um pouco o raciocínio: ao ler (ou ouvir!) uma narrativa, que características da trama e dos personagens fazem com que eles nos pareçam críveis e coerentes, de forma a sermos capturados para valer pela história? Os adeptos do darwinismo literário apostam que muitas dessas características têm a ver com os traços universais do comportamento humano, moldados pela evolução. (Um exemplo muito bem urdido de darwinismo literário pode ser encontrado neste post mais antigo do Visões da Vida, desta vez com referência à obra de Homero.)

Meninos e meninas

Eliason decidiu aplicar o darwinismo literário a um trecho pequeno, mas fascinante, da carreira do rei David: seu romance adúltero e posterior casamento com Betsabé. Se você não tem a menor ideia do que estou falando, faça um favor a si mesmo: pegue qualquer Bíblia, abra-a no Segundo Livro de Samuel, no Antigo Testamento, e leia o capítulo 11. Não vai doer nada – são literalmente duas páginas de narrativa ágil e cheia de complexidade psicológica, uma espécie de mistura entre “Ligações Perigosas” e “O Poderoso Chefão”. A tese de Eliason é simples. Em suas próprias palavras, “virtualmente todos os detalhes desse episódio revelam de forma empírica as estratégias reprodutivas humanas e as nossas propensões à violência. De fato, o ciclo literário de David é um painel dos últimos 30 anos de descobertas da psicologia evolutiva”.

Antes de explicitar todas essas afirmações, expliquemos antes o que ele quer dizer com esses “30 anos de descobertas”. Em linhas gerais, os psicólogos evolutivos estão descobrindo que, tal como outros mamíferos, cada um dos sexos de nossa espécie adota estratégias consideravelmente diferentes para conseguir sucesso social e, principalmente, reprodutivo. De forma altamente resumida e inevitavelmente simplificadora, pode-se dizer que os homens “gastam” muito menos que as mulheres na hora de investir na reprodução. Um membro do sexo masculino é capaz de fertilizar talvez centenas de parceiras ao longo da sua vida, enquanto uma mulher é forçada, toda vez que engravida, a passar pelo processo lento, cansativo e perigoso da gestação e do parto.

Isso significa que, em média – veja bem, em média –, os homens deveriam ser muito mais descuidados em relação ao sexo casual que as mulheres, e é o que normalmente se verifica em todas as sociedades humanas. E mais ainda no mundo bíblico, já que os antigos israelitas não tinham licença-maternidade nem Bolsa-Família. Mas há um porém: as mulheres estão longe de serem os joguetes inertes que uma visão mais simplista da psicologia evolutiva pode dar a entender. Assim como os machos agem de maneira a produzir o maior número possível de rebentos, elas também buscariam os melhores genes, e as melhores condições de vida, para seus próprios filhos. Se os parceiros fixos delas não são capazes de providenciar isso, elas podem muito bem retaliar traindo-os com homens mais bonitos, ou mais ricos, ou mais poderosos – melhor ainda, homens mais bonitos, mais ricos e mais poderosos.

Ora, havia alguém que reunisse mais essas qualidades no reino de Israel de 3.000 anos atrás do que David? Certamente não, diz a Bíblia. Além do mais, David era um grande guerreiro e um músico de primeira – praticamente um pop star do Oriente Médio, o que certamente tornaria o monarca um portador de genes de primeira grandeza aos olhos de qualquer mulher. Mas o capítulo 11 do Segundo Livro de Samuel mostra o rei já um pouco “passado” do auge de suas forças. Depois de matar o gigante Golias na juventude, ser um líder mercenário bem-sucedido e ganhar o trono de Israel, David já não vai diretamente à guerra: envia generais em seu lugar. Lição número 1 da psicologia evolutiva: as tendências violentas masculinas normalmente caem muito na meia-idade, quando os homens já alcançaram uma posição social estabelecida.

Topless

Esperando notícias da guerra contra Ammon (na atual Jordânia), David dá uma voltinha no terraço de seu palácio e vê uma mulher nua e belíssima banhando-se. Trata-se de Betsabé, esposa de Urias, um dos oficiais de David, que está em Ammon com o exército israelita. O rei imediatamente pede informações sobre a mulher e manda que a tragam à sua presença. Betsabé vai até o palácio e passa uma noite com David.

Aqui os detectores darwinistas quase quebram de tanto acender. Para começar, sabemos que Betsabé está em seu período fértil, porque logo depois a narrativa dá a entender que ela estava se banhando para se purificar de sua menstruação. Esse ritual israelita envolvia uma espera de mais de uma semana após o fim do fluxo menstrual para completar a purificação, colocando o banho, portanto, poucos dias antes da ovulação da mulher. Ora, há indícios de que as mulheres tanto ficam mais atraentes nesse período quanto tendem a agir de forma mais provocante, vestindo roupas mais sensuais em danceterias – ou tomando banho nuas à vista do rei, no caso. Do lado de David, que já tem sete esposas e nunca viu Betsabé antes, alguns fatos importantes são: homens em todas as épocas e culturas têm mais tendência a buscar sexo com desconhecidas e se mostram mais dispostos a se aproveitar de seu status para obter oportunidades sexuais.

E não é que o único encontro sexual entre os dois resulta numa gravidez, com Urias, o marido da bela Betsabé, ainda longe de casa? Ora, acredite ou não, a probabilidade de gravidez numa única relação sexual adúltera normalmente é maior do que numa única relação sexual “fiel” – provavelmente porque, no adultério, as mulheres estão seguindo inconscientemente uma estratégia reprodutiva de curto prazo, buscando genes de alto nível fora do relacionamento para filhos os quais serão, mais tarde, criados pelo marido.

É certamente isso o que David tem em mente: como bom macho dominante, ele quer oportunidades sexuais sem necessariamente ter de pagar o preço de enfrentar o marido traído e ainda cuidar da futura criança. A narrativa bíblica continua com uma visita de Urias a Jerusalém, logo após o anúncio da gravidez de Betsabé – na verdade, David convocou seu oficial para que ele comparecesse à capital israelita. O rei tenta induzir Urias a passar uma noite com a esposa, para fazê-lo achar que é o pai da futura criança. Não dá certo: Urias se recusa a dormir em casa enquanto seus companheiros ainda estão no campo de batalha.

Para evitar que o adultério se torne aparente, David então ordena que o comandante de seu exército, Joab, coloque Urias numa posição mais perigosa durante os combates, de maneira que o oficial acaba sendo morto. A coisa toda é construída de forma a afastar qualquer culpabilidade clara das mãos do rei. Trata-se de outra estratégia comum entre primatas como nós: para garantir a posição de mando, o líder sempre tenta manter as aparências de altruísmo e preocupação com o grupo, mesmo quando o contrário é verdadeiro. Após a morte do marido traído, David leva Betsabé para o palácio e casa-se com ela, alterando a estratégia reprodutiva de curto prazo (sexo casual) para outra de longo prazo (casamento) agora que a fêmea desejável está sem marido.

Amoral?

Quem nunca teve contato com essa história talvez esteja surpreso com o fato de que uma trama aparentemente tão amoral seja estrelada por um dos maiores heróis da Bíblia, ancestral do próprio Jesus, segundo a tradição cristã. Se você está chocado, ótimo: trata-se de uma deixa para que eu termine desmontando dois velhos preconceitos com uma cajadada só.

O primeiro é que a Bíblia não é um amontoado de historinhas feitas para ensinar moral e bons costumes para crianças. Em muitos casos, é uma narrativa profundamente adulta, que trata das mazelas do comportamento humano sem meias-palavras ou moralismos. O segundo, e talvez mais importante, tem a ver com o fato de nossas tendências à violência e ao comportamento sexual oportunista talvez estarem enraizados na nossa história evolutiva. Eu e o autor bíblico colocamos a mesma pergunta: e daí? Isso nos torna escravos dessas tendências?

Parece-me claro que não: a maneira como as coisas (biologicamente) são tem pouco a ver com a maneira como as coisas devem ser. Cabe também à nossa noção de certo e de errado tentar entender tais tendências e, se assim o decidirmos, controlá-las. Na narrativa bíblica, David pode ter escapado de Urias, mas não escapou de uma severa punição divina por seus atos. Não é preciso acreditar nesse tipo de castigo para achar que atitudes como a dele muitas vezes saem pela culatra.

Reinaldo José Lopes

http://colunas.g1.com.br/visoesdavida/

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