A libertação de Ingrid Betancourt coroou o fim de um resistente mito latino-americano
De Sierra Maestra a San José del Guaviare cumpriu-se um ciclo na história da América Latina.
Em Sierra Maestra, no sul da ilha de Cuba, onde, na passagem do ano de 1956 para o de 1957, se juntou o pequeno grupo de seguidores de Fidel Castro para iniciar a luta contra a ditadura de Fulgencio Batista, nasceu o mito do guerrilheiro romântico, destinado a pairar sobre a vida do continente pelo próximo meio século. Em San José del Guaviare, localidade da Colômbia em cujas cercanias foram resgatados, na quarta-feira passada, Ingrid Betancourt e outros catorze reféns das Farc, o mito, já abalado por sucessivas derrotas e desgastado pela velhice e pelo descrédito, conheceu um fim humilhante. As Farc, sua última encarnação, perderam o cacife que lhes restava sem direito a um único tiro para lhes salvar a honra. Foram vencidas, como o caipira que cai no conto-do-vigário, pelo truque de um adversário mais esperto.
A imagem do guerrilheiro que desce da montanha com a promessa de um mundo novo foi muito ajudada pelo clima reinante à época em que surgiu em cena. As barbas de Fidel Castro dialogavam com os cabelos compridos dos Beatles. Na salada geral dos anos 60, não importava que uns tivessem um fuzil na mão e outros pregassem paz e amor, que uns mirassem num regime de força e outros se refestelassem na anarquia; eram todos partes de um sonho em que tudo parecia possível. Em contraste, ao falecer, no início do ano, o líder das Farc, Manuel Marulanda, já não podia ombrear sequer com o antigo ídolo do rock reduzido a cantor de churrascaria. Era pior: o cantor que perdera a voz, e mal dedilhava a guitarra desafinada. A Manuel Marulanda, el Tirofijo, segundo o apelido que tentava insuflar-lhe alguns trocados de prestígio, coube o destino cruel, para um guerreiro, de morrer na cama. Ao contrário de Che Guevara, não conheceu, nem conhecerá, a glória das camisetas e dos pôsteres.
O Muro de Berlim desabou, a Guerra Fria chegou ao fim, o capitalismo mostrou-se dono de muito mais que sete fôlegos. Não repisemos essas histórias. As causas pelas quais as Farc não encontraram o mesmo terreno favorável da guerrilha cubana são conhecidas. Fiquemos com a questão do mito. Na América Latina, tão mais dada à retórica do que à ação, tão mais tentada pela fantasia do que pela realidade, a noção de que um pequeno grupo de jovens, um ideal na cabeça, uma barba no queixo e um fuzil na mão, fosse capaz de reinaugurar o mundo sobreviveu a mais de uma geração. A derrota de Che Guevara na Bolívia não a arrefeceu, muito pelo contrário. Serviu de inspiração para movimentos guerrilheiros (muitas vezes degenerando em terrorismo) que floresceram da Venezuela ao Uruguai, da Nicarágua ao Chile, passando pela Argentina e pelo Brasil.
Um dos últimos, o Sendero Luminoso, do Peru, já exibia os sinais de fadiga que haveriam de culminar nas Farc: a prática do crime pelo crime, o casamento com o narcotráfico. A imagem do líder do Sendero, Abimael Guzmán, exibido numa jaula dentro da qual esperneava como um gorila e rugia como um urso, depois de preso e levado a julgamento, no começo dos anos 90, distanciava-se irremediavelmente do olhar romântico do Che, tal qual capturado na foto de Alberto Corda. Na etapa seguinte, os ativistas das Farc iriam merecer o epíteto infamante de narcoguerrilheiros. E em meses recentes destacaram-se como torturadores dados a manter seus seqüestrados presos a troncos de árvores.
As Farc cumpriram à perfeição o roteiro imaginado pelo cientista político americano Eric Hoffer: "Toda grande causa começa como um movimento, vira um negócio e finalmente degenera numa quadrilha". Ou melhor, até anteciparam a ordem prevista por Hoffer, na medida em que os ramos de negócio que abraçaram, o narcotráfico e o seqüestro, já se confundiam com atividades quadrilheiras. Não há mito que resista. A imagem que hoje comove o mundo não é a do guerrilheiro vencido, como, nos anos 60, a de Guevara morto. É a de Ingrid Betancourt, a vítima da guerrilha.
O arremate veio na forma como foram libertados os reféns, na semana passada. Na aurora do mito, esperta era a guerrilha, e os governos é que eram feitos de bobo. Os tupamaros, nos primeiros tempos, antes de o conflito com a ditadura uruguaia virar um torneio de sangue, eram especialistas em brincar de esconder com os agentes da repressão. Faziam uma manifestação-relâmpago em certo lugar e quando a polícia chegava estavam em outro. Assaltavam um banco e corriam para distribuir o dinheiro entre os pobres. Na operação de resgate da semana passada, agentes do governo colombiano fingiram-se de guerrilheiros e assim obtiveram a pacífica entrega dos reféns. Pode ser que a história não seja bem essa, e tenha envolvido o suborno de algum chefe ou chefete da guerrilha. Em qualquer caso, as Farc entraram de trouxas na história. É difícil, mas vá lá que o mito até possa ter resistido à degenerescência do ideal em negócio, ou do negócio em crime. Não pode resistir à fama de otário.
Roberto Pompeu de Toledo
Revista VEJA- Edição 2068 (Julho de 2008)
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