segunda-feira, 29 de setembro de 2008

"A Dama do Livro" e outros mistérios



O óleo sobre tela A Dama do Livro (1882), de Roberto Fontana, era objeto do desejo de Machado, que não podia pagar por ele. Os amigos se cotizaram e lhe deram a obra de presente.

Conta-se que Machado, lá por 1855, contrariando seus hábitos, deixou de aparecer, nos finais de tarde, na Livraria Garnier. Seus amigos arriscaram que estaria com uma amante e foram segui-lo. De fato, havia uma senhora, A Dama do Livro, quadro do italiano Roberto Fontana, hoje na Academia Brasileira de Letras. Machado se apaixonara pela pintura e, achando o preço acima de suas possibilidades, contentava-se em visitá-la, diariamente, na vitrina. Os amigos deram a tela de presente a Machado, com um bilhete: “Não se esqueça de nós”. Machado, em agradecimento, lhes dedicou o “Soneto Circular”.

Ora, as reservas de Machado sempre estimularam fantasias. Tal como a Lenda da Madrinha, a senhora Mendonça Barrozo, que lhe teria aberto sua biblioteca e proporcionado ao afilhado pobre, que não freqüentou escola, a iniciação nos clássicos da literatura. Só que a madrinha morreu quando ele tinha 6 anos, idade em que ninguém já teria se iniciado em clássicos. Existe ainda a Lenda do Padeiro, um amigo, padeiro e francês, que, entre uma fornada e outra, haveria ensinado ao menino o idioma, algo jamais comprovado e pouco factível.

A mais peculiar é a da origem de seu apelido. Temos o poema de Drummond, intitulado “A um Bruxo com Amor”. Mas, existe A Lenda do Caldeirão. Na ABL, está o caldeirão de bronze em que Machado costumava queimar cartas e manuscritos descartados, no sobrado da Rua Cosme Velho, 18. Vendo-o assim, a vizinhança deu de gritar: Olha o Bruxo do Cosme Velho!...

Nessa biografia, não faltam controvérsias. Na certidão de óbito de Machado, além de omitida sua filiação, está que o mulato, autor de agudos textos contra a escravatura, era branco. E como profissão do presidente da ABL, nosso maior romancista, registrou-se: funcionário público.

Entretanto, nenhum mistério biográfico será tão fértil quanto suas bruxarias literárias. Esse escritor que alguns querem reduzir ao realismo e a mero retratista da História é o mesmo que deu a um canário o poder de desnortear um Darwin tropical devoto da ciência e da razão. Que transmitiu a um cronista a língua guliveriana para este participar do diálogo de dois burros sobre o progresso. Que conjurou defuntos e debateu com vermes sobre o lado patético da morte. E que, se retratou o Brasil, antes inventou uma câmera, um filme... e uma nova inteligência para decifrar os dilemas do Ser-Brasileiro.

Já o debate Capitu: culpada ou inocente, em cartaz há 109 anos, é a expressão corrente da impossibilidade de desvendar esse romance. Por um lado, os ardis de Bento Santiago incitam à suspeita e podemos tentar desconstruí-los, como se fossem um véu encobrindo a verdade. Por outro, levantaríamos o véu somente para constatar que não há, por baixo, face alguma. O que lemos, mesmo que para contestá-la, é a narrativa de Bentinho; não existe uma Narrativa de Capitu, nesse romance.

Ou seja, podemos denunciar a intriga que Bento Santiago fez contra Capitu para convencer o leitor... ou avalizar as confissões de um solitário Bentinho... Ou nenhuma das hipóteses? Ou ambas? Que tal alterná-las, caprichosamente? Afinal, escreveu o Bruxo: “Há neste mundo o que se possa dizer verdadeiramente verdadeiro? Tudo é conjetural.”

Algo semelhante ocorre quando nosso cronista se mete num leilão de objetos usados e lá fica a conjeturar sobre o background de uma espada. A princípio, quase nos convence de que teria sido usada na Guerra do Paraguai. Em seguida, lembra a notícia, num jornal, da chegada de imigrantes, dos quais, entre muitos de cada nacionalidade, havia um grego. Daí, quem empenhou a espada teria de ser esse grego, até porque, sendo apenas um, reclamaria menos que os demais, do cronista, caso estivesse sendo acusado injustamente. Finalmente, aventa que a espada teria sido trazida por um contra-regra, que a roubara de um cenário de teatro para conseguir uns cobres para o almoço. E encerra: “Se tal foi, façam de conta que não escrevi nada, e vão almoçar também, que é tempo”.

Foi a última crônica que Machado publicou. Haveria da parte dele despedida mais significativa e elegante?

Luiz Antonio Aguiar
Escritor, autor de "Almanaque Machado de Assis" e organizador da coletânea de crônicas de Machado "O Mínimo e o Escondido", pela Salesiana

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